
A corda e o Sino
- Ticiano Leony
- 19 de nov. de 2021
- 3 min de leitura
A corda e o sino
Ticiano Leony
A história da morte de Soror Joanna Angélica de Jesus
-Quem és tu? -Indagou o sino à corda que acabara de ser atada ao anel de seu badalo.
-Sou uma corda. Aliás, nova! Vim substituir a velha que estava aqui, se esgarçou e rompeu. E o senhor quem é?
-Oras, se estava com uma antiga corda presa a mim, sou um sino. Imagino que já sabias, logo não há porque me perguntares!
-Sei bem que o senhor é um sino. Reconheço por sua grande boca e seu badalo. Mas não o conhecia pessoalmente!
-És sempre assim desaforada?
-Geralmente, enquanto nova, sim. Sou até ríspida e às vezes perfuro e machuco a mão de quem pega em mim. De onde o senhor veio?
-Da Fundição Irmãos Guimarães, de Braga, Portugal!
-Logo percebi pelo seu sotaque.
-E tu, de onde vens? Certamente não és da Cordoaria de Lisboa, pois não?
-Sou da região sisaleira de Coité, aqui mesmo na Bahia. Nasci fibra da folha de sisal colhida e escolhida, fui beneficiada, seca, tratada, trançada, enrolada e cortada para ser amarrada ao senhor!
-Sejas bem-vinda ao Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, minha cara! Aqui viveram as irmãs franciscanas concepcionistas da Ordem da Imaculada Conceição!
-Há quanto tempo o senhor está aqui?
-Desde a inauguração! Isto foi em…faz tanto tempo…Ah! Lembrei-me! 1744 depois de onze anos em obras.
-Por que o senhor está aqui na entrada da clausura?
-Não sou grande o suficiente para o campanário! Lá, os sinos são enormes. São meus irmãos de fundição. Todos do melhor bronze!
-Eu gostaria de ser atada a um sino do campanário e ficar lá no alto balançando ao vento.
-Não és forte o suficiente para os sinos do campanário. Além do que, aqui tem mais vida, poderemos juntos apreciar o movimento das freiras.
-Aqui também trabalhamos mais!
-Porém…Se em 1822 eu não estivesse aqui, não teria testemunhado o assassinato covarde de Irmã Joanna, a abadessa do convento. Era jovem ainda, 61 anos! E também não teria esta história para contar.
O velho sino soou, como se fosse chorar.
-Foi quando emiti minhas notas mais tristes. Ainda me lembro como se fosse hoje!
-Não diga! Nunca soube deste caso.
-Não eras nascida como eu e meus irmãos maiores, os do campanário. Pois vou te contar como sucedeu tal fato.
-Conte logo que estou ansiosa! –Disse a corda.
-A soldadesca lusa invadiu o convento. Sóror Joanna Angélica de Jesus –era este o nome dela–ordenou que as outras freiras e as noviças abandonassem o convento.
-Por onde, se a entrada estava tomada?
-Pelos fundos! Havia um grande quintal, cheio de mangueiras, bananeiras, sapotizeiros, moitas de capim santo e erva-doce, pés de carambolas e de goiabas! Foi por lá que as irmãs fugiram e ainda tiveram que pular o muro para se livrarem dos soldados.
-E por que queriam invadir um convento religioso?
-Apesar de sermos patrícios, os soldados portugueses estavam enlouquecidos por estarem sendo comandados por um brasileiro de nome Manoel Pedro de Freitas Guimarães, feito Governador de Armas da Província da Bahia. Ainda assim não tinham motivos para tanta brutalidade e inclemência! Isto tudo aconteceu no dia 15 de fevereiro de 1822. No dia 19 chegou à Bahia a nau Leopoldina com um comandante durão chamado Ignácio Luiz Madeira de Mello, tão duro quanto uma beira de sino! Hahahahahahaha!
-Sem piadinhas, senhor sino! Nem parece que há pouco o senhor estava triste, quase choroso!
-Perdoa-me o chiste, minha cara! Mas vamos à história.
-Acho melhor!
-A ordem dos superiores era para que seus homens justificassem as invasões dizendo que havia atiradores alvejando seus comandados nas ruas. E sabes onde eles diziam que estavam?
-No mirante!
-Exatamente, menina! Até que és inteligente para uma simples corda de vida fugaz!
-De vez em quando, és desagradável… Pois continue! Quero aprender o que houve.
-Depois que a Abadessa Joanna Angélica teve certeza que as outras irmãs haviam fugido e estavam em segurança, ela percebeu que eles haviam morto o capelão Daniel Nunes da Silva Lisboa. Temerosa de mais violência, e já que eles haviam entrado no terreno do convento, não havia muito a fazer. Depois que subiram as escadas eviram que não havia viva’ alma no mirante,acharam que estavam escondidos na clausura que é um lugar restrito, exclusivo para as religiosas, onde nenhum homem deve entrar!
-E eles entraram?
-Ah! Assisti a tudo daqui! Vês aquela porta de treliças de madeira?
-Sim!
-Pois ela ficou heroicamente à frente das espadas! Deu-lhes o peito e disse: “Para trás, bandidos! Respeitai a casa de Deus! Só entrarão passando por cima do meu cadáver! ”.
-E eles entraram?
-Sim! Trespassaram seu coração com as ferozes lâminas! Atualmente botam esta frase em dúvida, como se fosse uma coisa folclórica da guerra pela independência do Brasil, mas é tudo verdade! Sou testemunha!
-Foram muito maus.
-Sóror Joanna Angélica se tornou a primeira heroína da independência do Brasil e está no panteão dos heróis da tua pátria.
-Da do senhor também.
-Não, minha cara. Continuo português, embora prefira morar aqui neste convento. Jamais tornarei a Portugal.
Amei. Eu não sabia que ela, sóror Joana Angélica , tinha sido morta em frente a clausura. Que lição bacana de História Bahia. Aplausos.
Interessante pensar, que a corda pode ter mil outros usos. Já o sino , sem ela não vibra e não vive !