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O Caxinguelê zangado

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 14 de fev. de 2022
  • 5 min de leitura

O Caxinguelê zangado

​​​Ticiano Leony

-Ei, ei, ei!!! –Foi o que se ouviu, mesmo assim baixinho, quase inaudível, naquela manhã fresca na mata da Sapiranga. E repetiu.

-Ei, você sabe quem sou eu?

Jeremias parou sua caminhada pela trilha, tirou o boné e ficou aguardando, quieto, para tentar ouvir outra vez o chamado. Seria uma coisa dali mesmo ou do outro mundo? Nem se movia para o som dos pés amassando as folhas no piso, não atrapalhar a audição. Jeremias olhou para os lados, nada, para trás, nada. Então levantou a cabeça e olhou para o alto. A luz da manhã filtrada pelas copas das árvores imensas, mal chegava ao chão. A poucos metros de onde havia parado, um pau-ferro chamava a atenção por ser uma das mais baixas árvores da floresta. Deveria ser a mais nova tirando os inúmeros brotos que nasciam de sementes caídas no chão fértil.

​Num galho baixo, Jeremias percebeu um bichinho. Parecia um esquilo destes que se vê em filmes americanos e até em desenhos animados onde se chamam Tico e Teco. Mas aquele era ainda menor e mais acinzentado. Jeremias apurou a vista. O bicho estático no galho olhava fixamente para ele com os olhos castanhos arredondados, uma cauda larga e arrebitada que o ajudava a se equilibrar em pé no galho e as duas mãozinhas juntas como se segurasse alguma preciosidade.

​Jeremias caminhou lentamente até a árvore para não espantar o bichinho.

-Foi você que me chamou? –Perguntou o rapaz.

​Não houve resposta. Jeremias chegou mais perto. E repetiu a pergunta. Então ouviu uma vozinha aguda.

-Foi, sim. Você sabe quem eu sou?

​O rapaz arriou a mochila no chão para olhar mais livremente para o alto.

-Você é um esquilo!

-Cáspite! –Exclamou o animalzinho –Sempre nos confundem com os esquilos, cacete! Tem até quem nos chame de esquilo brasileiro, maldição! Esquilo uma joça!

-Claro que você é esquilo. Não da mesma família dos norte-americanos, mas ainda assim um esquilo.

-Como você pode ter tanta certeza? Quem você pensa que é? Alguma autoridade?

-Sou biólogo! –Respondeu Jeremias –Estudo os animais de um modo geral e os da floresta em especial. E você, é sempre assim malcriado?

-Sou malcriado, mas eu não sou esquilo, coisa alguma. Sou Caxinguelê.

-Está bem, Caxinguelê. Mas posso também lhe chamar de Acutipuru que é como os índios lhe conhecem.

-E caxinguelê?

-É um nome de origem africana.

​Enquanto se acalmava, o bichinho parou como se estivesse pensando com qual nome preferia ser tratado.

-Olhe aqui! –Disse ele –Pra mim tanto faz, contanto que não me chame de esquilo, sacou? Mesmo porque agora querem que eu seja também Serelepe. Aí a coisa vai pegar! Nunca serei Serelepe! Serelepe...Serelepe uma privica!

-Por que?

-O Serelepe é marsupial como o sariguê e o canguru. Eu não sou marsupial, sou mamífero roedor. Meus dentes crescem a minha vida toda, sabia?

-Claro que sabia.

-Você é caçador?

-Não, Caxinguelê, sou pesquisador, biólogo, entendeu?

-E estes apetrechos na sua mochila? Vai dizer que não tem uma garrucha, uma espingarda, um arcabuz...

-Não, não tenho.

-Mas deve ter armadilhas! Conheço bem o seu tipo. Han -han! Já sei, você quer os bichos vivos para vender na feira dentro de gaiolas ou amarrados nas correntes como amarraram o papagaio Oscar num poleiro.

-Alto lá! Conheço Oscar. Ele vive com os humanos, mas vive solto. De vez em quando o doutor Rodrigo dá a ele uns goles de vinho caro, ele se anima, vai para a varanda e faz um longo voo, mas volta pra mesma casa.

-É, mas Pedrito, outro papagaio que mora aqui perto, disse que vocês pegam os papagaios, as maritacas e as araras e os amarram pelo pé num poleiro!

-Isto não se faz mais, Caxinguelê.

-E o que tem na mochila?

-Mas é cada uma! –Disse Jeremias pensando alto –Depois, se eu contar que fui interpelado por um Caxinguelê, vão dizer que eu estava bebendo em serviço ou que tinha batido a cabeça.

-O que você disse? –Impertinente, perguntou a vozinha estridente.

-Disse que vou lhe mostrar o que trago comigo.

​Jeremias então se agachou, abriu o zíper e começou a retirar o que estava na mochila. Uma garrafa térmica, um saquinho com remédios, um tubo de repelente...

​O caxinguelê de cima do galho olhava fixamente.

...Uma caixa plástica com uma refeição rápida, uma câmera fotográfica compacta com um pequeno tripé e no fundo, um casaco dobrado.

-Está tudo aí, Caxinguelê.

-Você tira retrato?

-Tiro. Faço fotografias.

-Você poderia fazer umas fotos minhas para você mesmo publicar no Instagram?

-Poderia, claro.

-Seu Instagram é emparelhado com seu Facebook?

-Eu devo estar sonhando –De novo Jeremias pensou alto. —Um caxinguelê que conhece as redes sociais!

-Como é? –Berrou o Caxinguelê com todas as suas forças.

-Nada, nada. Vou ligar a Câmera.

​Jeremias muniu-se dos aparatos necessários e apontou a lente para o animalzinho. O Caxinguelê começou a fazer poses e mais poses e foi aos poucos perdendo a vergonha. Com jeito, desceu do galho, sempre segurando o objeto que Jeremias julgava ser alguma semente de amendoeira ou alguma castanha brava. No chão, entre as folhas, o Caxinguelê fez mais poses para os cliques de Jeremias sem largar o que estava segurando. Foi quando ele se abaixou, depositou o objeto num pedacinho apodrecido de madeira e começou a cavar. O objeto era arredondado e aparentemente brilhava embora sujo e mesmo com a luz difusa do sol no chão da mata. Jeremias não quis se aproximar, então colocou uma pequena teleobjetiva e mirou para o ponto meio brilhante. Disparou e olhou no visor atrás da câmera ampliando a imagem. Para seu espanto era uma moeda.

-Caxinguelê –Perguntou o Biólogo –O que você vai enterrar?

-Ainda não sei, mas é muito duro, chato e acho que nunca vai nascer. Já mordi e nem arranhou. Acho que nem é uma semente, não tem cheiro, nem cor.

-Isto é uma moeda! –Esclareceu Jeremias.

-Moeda? Para que serve moeda? Posso comer moeda?

-Não pode, mas serve para comprar coisas.

​O Caxinguelê olhou interrogativo para Jeremias.

-Aqui na mata não existe isto de comprar. Quando você quer uma castanha, você vai lá e pega. Quando quer água, bebe numa poça ou no riacho, tudo é dádiva de Deus, tudo é da natureza. –Explicou o rapaz.

-E onde você vive, não é assim? Se você quiser uma fruta, vai no pé e pega, se quiser água, vai no rio e bebe, não é assim também?

-Hahahahaaha! Já foi, Caxinguelê. No tempo dos homens-nus era assim, agora tudo é comprado. Qualquer hora destas, até o ar que respiramos será comprado.

​O Caxinguelê parou de cavar e olhou fixamente para Jeremias. Sacudiu a cauda, deu dois pequenos pulos até onde estava a moeda, pegou-a com suas unhas afiadas e se virou para Jeremias.

-Neste caso, esta semente nunca vai germinar nem que eu a plante como faço com as outras. Muitas eu acabo esquecendo, germinam e viram árvores e eu perco a comida. Então, tome esta semente que você diz que se chama moeda. Não sei se se usa para isto, mas é pelos retratos que você tirou meus e que vai publicar na Internet. Estamos de acordo?

-Estamos –Respondeu Jeremias agachando-se para receber a moeda das mãozinhas do Caxinguelê.

​O animalzinho correu e subiu no tronco em busca da segurança de sua árvore e de sua toca.

​Jeremias levou a moeda embora. Quando chegou à cidade, já noite, mostrou a moeda ao pai.

-Filho, onde você arranjou isto?

-Na mata da Sapiranga, perto da Casa da Torre.

-Estava jogada no chão?

-Bem...Nem posso lhe contar em que circunstâncias achei esta moeda.

-Você sabe que moeda é esta?

-Não, estava suja quando achei.

-Mas agora está lavada e limpa, veja!

​Jeremias recebeu a moeda brilhante da mão do pai.

-Filho, esta é uma moeda de ouro do tempo do Império e deve valer mais do que o seu peso em ouro. Vou mandar avaliar, mas pode dar para a entrada num carro pra você. Que sorte!

-Sorte mesmo! E o melhor é que ninguém vai acreditar e por isto nunca vou contar.

 
 
 

1 Yorum


Linda Neves, jornalista social
Linda Neves, jornalista social
14 Şub 2022

Adorei. Até parece que lá tem muitas moedas do império 😃. Divertido. Que diferença do mundo do humano e dos animais.

Beğen

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