A marisqueira aguerrida
- Ticiano Leony
- 22 de fev. de 2022
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A Marisqueira aguerrida
Ticiano Leony
Era fim de tarde, o sol já havia descido por trás do continente, lá para as bandas do Funil. De onde Crisóstomo estava, via-se o mar plácido levemente ondulado pela brisa oceânica, quebrada pelo paredão da cidade da Bahia. O vento que chegava a Itaparica, sempre era leve e morno, a não ser o temido vento sul e o nordeste bravio na viração.
A cidade de Itaparica, ali onde antes, muito antes era o arraial de Ponta das Baleias, mantinha-se quieta e silenciosa. Crisóstomo, sozinho, estava perdido em seus pensamentos. Havia saído em seu saveiro de “vela de pena” ainda de madrugada e conseguira trazer pescado suficiente para lhe garantir uns poucos dias de folga, que era do que mais gostava. Não que fosse preguiçoso, de forma alguma, mas é que estava estudando num curso noturno para agentes de turismo. Pensava já em sua velhice, quando o que recebesse de aposentadoria como pescador, não fosse suficiente para sua cachacinha de alambique, suas cervejas de sábado e seu apreciado fumo de corda.
Naquele horário, entre o anoitecer e a hora de ir para o salão da sacristia da Igreja de São Lourenço, ele astuciava, fazia conta, sonhava. Anotava alguma coisa com o lápis de ponta bem afiada na caderneta que carregava no bolso da camisa branca de algodão.
Enquanto a noite chegava e se acendiam os postes de iluminação pública, eis que Crisóstomo teve chamada a sua atenção por um redemoinho bem ao lado do banco aonde se sentara para apreciar o mar. Ele sentiu um arrepio, os poucos cabelos dos braços e pernas curtidos de sol e mar se eriçaram e ele ficou em alerta. –O que será isto, Deus meu? –Indagou-se. Aprumou o corpo no banco sem encosto e colocou-se em atenção.
Sentiu nitidamente uma pessoa sentada a seu lado. Mas ninguém estava ali. Pelo menos que desse para ver no local parcamente iluminado pela luz mortiça do poste.
-Quem está aí? –Arriscou-se a perguntar.
Outra vez o redemoinho apareceu girando pequenas folhas ressequidas pelo sol, grãos de areia e pedacinhos de papel abandonados há muito.
-Acho milhó respondê! –Ameaçou Crisóstomo.
Então ele ouviu uma voz vinda não sabia de onde. Era num tom de desafio, como se estivesse duvidando que ele de fato tivesse escutado.
-Meu fi, me mande um sinal que ‘tá me escuitano...
Crisóstomo era tido e havido como um camarada corajoso. Já enfrentara tempestades, ventanias e tormentas, peixes grandes e valentes, já ficara perdido no mar, numa ocasião quando chegaram a dá-lo como perdido. Não ia ser uma almazinha do outro mundo que iria amedrontá-lo, ainda mais ali, no meio da praça. Mesmo vazia.
-Quem ‘tá aí? Sei que tem alguém. É quem? –Indagou ele, mais curioso que temeroso. Há muito ele dizia ter medo dos vivos, porque os mortos nada de mal poderiam lhe fazer. Mas ali, naquela situação, ele bem que preferiria lidar com algum vivo e bem vivo, ainda que valente, do que...
-Sou eu! –Respondeu a voz. –Sou eu, Joana.
Crisóstomo botou a cabeça para funcionar. As Joanas que ele sabia, estavam bem vivas. E não se lembrava de alguma Joana sua conhecida ou de sua família que tivesse desencarnado. Arriscou.
-Que Joana?
-Joana Soaleira.
-Quem?
-Tu num me conhece, Crisóstomo. Mas eu conheço tu.
-Nunca ouvi falar no teu nome... Qué me contátua história?
-Óia, eu tô aqui por conta de um causo qui me aconteceu, uma injustiça e um reparo.
Então outro redemoinho apareceu bem embaixo do poste. –Será que vem mais gente aí? –Perguntou-se Crisóstomo.
Outra voz de mulher se fez ouvir.
-Cheguei também. Vim pra conversá e sou interessada no causo.
-E quem é tu? –Perguntou o pescador.
-Meu nome é Brígida do Vale.
Antes que Crisóstomo se aprumasse para compreender a presença de tantos espíritos ao mesmo tempo, fazendo-se notar para ele, já outra voz de mulher se ouviu.
-E antes que vosmecê diga qui num chamou nenhuma de nóis, também cheguei. Sou eu, Marcolina. –E deu uma sonora risada que arrepiou até os cabelos escondidos de Crisóstomo.
-Qui é qui vosmecês qué? Alguma missa? Posso encomendar. Padre Augusto é um bom homem e vai compreender a demanda.
-ôxe, qui num é nada disso! E nóis é de Terreiro de Santo, num é de igreja! –Ralhou Joana.
-Entonce diga o que vosmecês qué. E fale logo quidaqui a pouco tenho cumpromisso.
-Crisóstomo, tu já ouviu falá em Felipa?
-Aqui tem uma Felipa...
-Não, home! Maria Felipa, a marisqueira!
-Hummmm...É a que agora ‘tá na moda? Qui tão resgatando como um personage da história?
-Ela merma! –Exclamou Brígida. E dirigindo-se às outras, disse –tão vendo ‘ocês? Só ela é conhecida, só ela é lembrada, nóis fica na rabada!
Nesta hora um grande redemoinho, ainda maior do que os outros, levantou um poeirão no chão da praça. –Louvado seja Cristo! –Pensou Crisóstomo. E agora, quem será?
Crisóstomo estava desconsertado porque não via as pessoas nem os vultos, apenas ouvia suas vozes e sentia a presença deles, como um encosto frio, diferente de um humano vivo que quando encosta é quente. Então ele ouviu o vozeirão.
-Já cheguei para colocar ordem na casa! Isto aqui está necessitando de uma hierarquia, e como sou o mais graduado, cabe a mim organizar a peleja.
-Agora que deu! –Disse o pescador em voz alta. De longe, se alguém estivesse vendo a cena, pareceria algum louco conversando com o nada. Mas na praça não havia vivalma. Aliás, era o que bem havia ali, almas vivas! –E quem é vosmecê?
-Ah!, percebo que também me escutas! Então não precisarei continuar gritando. –O recém chegado então passou a falar normalmente –Eu sou João das Botas!
-Viva! Pelo menos alguém de quem já ouvi falar! –Exclamou Crisóstomo.
-Já ouviu? –Perguntou João –Bem ou mal?
-Nem bem, nem mal. Batizaram um navio da Bahiana com o nome de João das Botas. Até já foi retirado de circulação, mas ficou a fama de bom barco.
João das Botas calou-se por uns momentos. Certamente ficou decepcionado.
-Tudo que sabes de mim é isto? –Indagou João.
-‘Tá vendo, Tenente? Nem vosmecê escapou do esquecimento! –Exclamou Marcolina.
-Verdade! –Confirmou João. –E agora?
-Quando nóis resolveu aparecê por aqui, nóisdisse a vosmecê qui o caso era perdido! –Falou Joana. –Vosmecê qui achou qui ainda tinha jeito! Se nem de vosmecê o povo se lembra...
-Mas pelo menos sou nome de rua na capital da província! E estou nos principais livros de história ao lado do Almirante Cochrane.
-Bom! –Brígida do vale retomou a palavra –Vamologo alinhavá o qui nóis veio fazê aqui. O moço daqui a pouco tem ocupação.
E dirigindo-se ao vivo, falou.
-Seu Crisóstomo, Maria Felipa de Oliveira era uma marisqueira qui morava bem aqui onde nóis‘tá agora. Ela fez uma porção de arte enquanto vivia aqui, nos tempo da independência, sabe?
-Sei de ouvir falar... –Respondeu Crisóstomo.
-Ela fez coisa do arco da velha com os maroto... –Esclareceu Joana.
-Maroto? –Indagou o pescador.
-Sim, home! Maroto era como nóis chamava os marinheiro portuga. Sabe o qui nóis fez mandado por Felipa?
-Deve ter sido algum ato de guerra! –Disse Crisóstomo.
-Tu falou agora como um professor! –Comentou Marcolina.
-Mas foi! –Interveio Brígida –E nóis tudo ‘tava lá na hora. Nóis cantava: “vamo comê maroto com pão, dar neles uma surra de bom cansanção, fazêas marota morrê de paixão!” Fizemo o qui Felipa mandou. Nóis era bela, nesse tempo. Deixamonossos home de tocaia e atraímo os marujo pra praia. Nóis tudo cum pouca roupa. Quando eles desembarcaro e viero atrás de nóis, entramo no mato. A gente tinha escondido u’as moita de cansanção, tu sabe o qui é. Eles tiraro as fardaquando chegaro na praia e fundaro nos mato. Demo neles de cansanção e nesse meio tempo os home da gente entraro nos barco deles e tacarofogo. Queimamo tudo. Maria Felipa ficou contente que a artimanha deu certo.
-Que mulhé danada! –Exclamou Crisóstomo.
-Tu num sabe de nada –Emendou Marcolina –Ela pintou e bordou, mermo depois dos maroto terdeixado a capital da província, ela ainda tacou fogo no forte. Era um retada!
-Ela era marisqueira. Uma negra de valor, Senhor Crisóstomo! Era uma escrava liberta, alforriada!–Esclareceu João das Botas.
-Mas o que é mermo que vosmecês qué comigo, além de me assombrá?
Joana Soaleira tomou a palavra.
-Naqueles tempo a gente vendia os pescado, os marisco nas gamela de madeira, de porta em porta. Era uma vida sofrida, as carne também era tudo vendida assim. Em volta das cabeça da gente, uma mosquitaria dos diabo. Mas num tinha jeito. Num tinha as facilidade de hoje que ‘osmecês guarda as coisa num armário enregelado de um ano pro outro. Tudo tinha qui sê consumido fresco ou estragava e o povo tinha cada dor de barriga de virar as tripa pelo avesso. Mas isso agora num conta.
-E o que conta?
-Nós queremo tê a merma importância de Maria Felipa. Dê seu jeito, avie, estude, fale com os turista qui vié aqui. Diga assim: Tinha quatro valorosas e corajosas mulheres em Itaparica: Maria Felipa, Brígida do Vale, Joana Soaleira e marcolina. Elas ajudaro na luta contra os portuga. Botaro eles pra correr de Itaparica.
-‘Tá bem! –Se for só isto... –Aquiesceu Crisóstomo.
-E acrescente que eu fundei a “Flotilha Itaparicana” que foi o embrião da Marinha do Brasil! –Ufanou-se o tenente João das Botas.
-Isto todo mundo sabe, Tenente! –Arreliou Marcolina.
-Pode saber, mas não lembra. –Contestou João.
-Não lembra porque não é visto! Só quem é visto, é lembrado! –Ponderou Joana.
-Só tem uma coisinha aí! –Falou Crisóstomo.
-O que é? –Perguntaram todos.
-Donde que eu vou dizê qui tirei essa história?
Então a frieza imediatamente desapareceu e Crisóstomo, sem a resposta, levantou-se do banco e, com um meio riso, foi para o salão paroquial ouvir sua aula de história para turistas.
Fontes:
“Os esquecidos no processo da Independência: uma história a se fazer”, Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Fórum Almanack, RJ, 2020
“Santos, deuses e heróis nas ruas da Bahia”, Walmyra R. de Albuquerque, UFBa, 1996.
“Heróis baianos! Às armas! A glória vos chama”, Marcelo Siquara, UFBa, 2018.
Maria Felipa de Oliveira: heroína da Independência da Bahia, Emy Kleide Farias, 2010.
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