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A espada e a baioneta

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 14 de dez. de 2021
  • 6 min de leitura

A Espada e a Baioneta

Ticiano Leony

Dizia a espada:

-Sou feita de melhor aço que o teu!

-Bobagem! –Respondeu a baioneta –Tu és apenas lâmina, enquanto eu sou fuzil e lâmina de aço damasco. Tu és empunhadura, pomo, guarda e anel.

-Mas sou brilhante e polida, enquanto és escura e fosca! –Rebateu a espada.

-Estou, porém adiante de um fuzil, penetro nos corpos e os dilacero e as minhas balas alcançam ao longe. Para tal não preciso beleza. E ainda por cima, andas dentro de uma bainha de ponta para baixo enquanto eu lidero por estar sempre à frente e avante. –Gabou-se a baioneta.

-Deixai de ser tola, pobre coitada. És apenas e tão somente baioneta, o fuzil que enalteces, nada tem de heroico, muito antes é covarde. Só ataca à distância. Verás nesta história que a heroína me empunhou diversas vezes e com ela apareço em riste nas iluminuras. Enquanto tu...

-De fato, mas, tiremos as dúvidas ao longo da história.

Nos anos que antecederam a virada do século XVIII para o XIX, era tranquila e pacata a vida nas aldeias de Santo Antônio do Tanquinho, Santa Bárbara, Olhos d´água da Feira e São José de Itapororocas*, esta considerada a terceira freguesia da vila localizada na alta serra do Granito. Estas freguesias compunham a Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira. Lá em são José de Itapororocas vivia Gonçalo Alves de Almeida, português, agricultor, senhor de escravos e temente a Deus e a quem governasse a colônia, fosse o Príncipe Dom Pedro ou as Cortes de Lisboa.

-Não me caso por nada! –Vivia o luso alardeando aos quatro ventos.

Gonçalo não queria perder sua liberdade de solteiro, mas mantinha relacionamentos muito mais íntimos do que o permitido, com as mulheres que lhe dessem trela, solteiras, viúvas ou casadas. Cobrado pelos conhecidos, altercava-se:

-Mas posso amancebar-me com a Joana!

*A partir de 1938 é distrito de Feira de Santana e se chama Maria Quitéria

Dos encontros fortuitos com Gonçalo, Joana Maria de Jesus deu-lhe a primeira filha, Maria Quitéria, nascida em 1792, batizada apenas com o sobrenome da mãe, na capela de São Vicente, pelo padre Manoel José de Jesus e tendo como padrinhos Antônio Gonçalves Barros e Josefa Maria de Jesus.

-Por que não dás teu nome à menina? –Perguntou o padre a Gonçalo.

-Porque os filhos de minha filha, meus netos são. Os filhos de meu filho, serão ou não!

-Podes ser castigado por tua desconfiança vil e exacerbada! –Disse o Pároco que assinou o assentamento de batismo no livro da capela.

Gonçalo e Joana ainda tiveram mais dois outros filhos, Luiz e Josefa. Quando Maria Quitéria estava com dez anos, morreu Joana. Como filha mais velha, Quitéria tornou-se responsável prematuramente pelos dois irmãos e pela casinha onde viviam. Luiz faleceu ainda criança e Josefa viria a casar-se com o soldado José de Medeiros.

Gonçalo seguia trabalhando no campo, plantando, colhendo e ordenhando as vacas. Maria Quitéria não teve oportunidade para estudar, de modo que o jeito foi aprender a atirar com garrucha, arcabuz e bacamarte, o que lhe dava muita fama e satisfação.

No mesmo ano que enviuvou, Gonçalo cortejou Eugênia Maria dos Santos, filha de um vizinho de fazenda chamado Manoel Carvalho dos Santos e de Dona Maria das Neves dos Santos que exigiram que houvesse o casamento ou nada feito. Gonçalo casou por causa do dote. A cerimônia simples e rápida foi oficiada pelo vigário Miguel Ribeiro Lima. Não quis o destino que tivessem filhos.

-Vês até onde pode ir o castigo divino! –Alertava o Padre Manoel.

Gonçalo voltou a enviuvar. Naquela época vendeu o Sítio Licorizeiro onde tinha 5 escravos, gado bovino e cavalar, uma casa de morada coberta de palha, um tacho de cobre e uma roda para ralar mandioca.

Com o resultado da venda da terra, acrescido do dote e suas economias, em 1804 comprou a Fazenda Serra da Agulha. Logo depois se casou com Maria Rosa de Brito, também portuguesa, com quem teve sete filhos sendo a mais velha, Tereza maria.

Em 1822, já com 30 anos, Maria Quitéria, franzina, pequena e magra, “iletrada, porém inteligente”, ouviu falar das escaramuças pela independência do Brasil. Um dia apareceu na fazenda Serra da Agulha um emissário do Conselho Interino, sediado em Cachoeira.

-Estamos em busca de auxílio financeiro e material para a guerra! –Declarou o enviado.

Gonçalo o despediu:

-Pouco se me dá se quem governa são as cortes de Lisboa ou os Concelhos do Rio de Janeiro!

Depois de ouvir, ao lado de Gonçalo, as narrativas do emissário, Maria Quitéria virou-se humildemente para o pai e disse:

-É verdade que não tendes filho, meu pai. Mas lembrai-vos que manejo bem as armas e que a caça não é mais nobre que a defesa da Pátria. Deixai-me ir, ainda que disfarçada, para tão justa guerra!

-Mulheres fiam, tecem e bordam, não vão à guerra! –Respondeu Gonçalo sem dar chance a alguma contestação.

Maria Quitéria já era independente e contrariava os padrões sociais da época. Sozinha, tomou a decisão de fugir. Foi procurar abrigo em casa de sua irmã Josefa, que era casada com o soldado José Cordeiro de Medeiros e com quem tinha filhos. Lá chegando contou o desentendimento com o pai.

-Senti o coração ardendo em meu peito! –Disse Maria Quitéria.

-Se não tivesse marido e filhos, por metade do que tu disseste, eu me candidataria às tropas do Príncipe! –Respondeu Josefa.

Com o apoio da irmã e do cunhado, Maria Quitéria cortou os cabelos como homem e vestiu a farda de José. Foi então se alistar no Batalhão Voluntários do Príncipe Dom Pedro que por ter nos uniformes, golas e punhos verdes, ficou conhecido como Batalhão dos Periquitos.

Maria Quitéria ficou na força de outubro de 1822 a julho de 1823. Passou a ser conhecida como Soldado Medeiros e reconhecido por sua bravura e disciplina. Em fevereiro do mesmo ano, estava na Primeira Divisão de Direita, combatendo na estrada da Pituba. Nesta luta, escalou e atacou uma trincheira de espada em punho e fez dois combatentes portugueses prisioneiros, conduzindo-os sozinha até a detenção.

Em março de 1823, estava a tropa acampada ao redor de Olhos d´Água da Feira e como andava o pai por todo canto da Freguesia em busca da filha desaparecida, Gonçalo houve por bem inquirir aos componentes do grupo, pela moça. O batalhão dos periquitos era comandado pelo major José Antônio Silva e Castro*. O próprio Gonçalo reconheceu Maria Quitéria.

-Lá está ela! –Apontou. E começou a gritar a plenos pulmões –Quitéria, Quitéria, Quitéria! –Enquanto caminhava em direção a ela.

-Está aqui, senhor Major! Está aqui a milha filha que todos tratam por Medeiros, soldado Medeiros! –Denunciando-a como mulher.

-Não permitirei que tireis de meu batalhão esta pessoa. Se é mulher, age com mais destemor que muitos homens!

O Major, enaltecendo as qualidades de Medeiros como combatente, sua coragem e a facilidade com que manejava a baioneta e a espada, não concordou em liberar a moça.

O Conselho Interino tomou conhecimento do acontecido e ordenou que o Inspetor de Fardamentos, Montarias e Misteres promovesse Maria Quitéria a 1º Cadete e desse-lhe dois saiotes de camelão e uma fardeta de polícia. O Inspetor de Trem de Guerra ordenou que dessem uma espada própria ao cadete Maria Quitéria.

Constatado o valor das mulheres na guerra, foi então criado um batalhão feminino comandado por Maria Quitéria.

O Comandante José Joaquim de Lima e Silva deu testemunhos de bravura de Maria Quitéria:

-Ela “apresentou feitos de grande heroísmo quando avançou por dentro de um rio com água até os peitos”!

Finalmente a 2 de julho o Governador de Armas português, Ignácio Luiz Madeira de Melo capitulou e em seguida, acompanhado de seus comandados, deixou a Bahia a bordo de 54 embarcações diversas, seguida a esquadra de perto pelas caravelas do Almirante Cochrane.

*Avô do poeta Castro Alves

Nas últimas semanas de batalha, Maria Quitéria solicitou ao comando que a permitisse desposar o furriel* João José Luiz, por quem estava apaixonada. A concessão foi atendida, mas logo depois o sargento foi morto em combate.

Maria Quitéria solicitou ao Comandante Lima e Silva a permissão para ir pessoalmente conhecer Dom Pedro no Rio de Janeiro. Em 16 de agosto de 1823, ela desembarcou da caravela Leal Português no Porto do Rio de Janeiro. Recebida em audiência pelo Príncipe foi agraciada com o título de Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. Dom Pedro conversou pessoalmente com Maria Quitéria.

-Majestade, vós não tendes ideia do que passei para servir à minha Pátria! Tanto que me restou uma inimizade com o meu pai, pois ele não admitia que eu fosse à guerra.

Dom Pedro ordenou que ela fosse promovida a Alferes com soldo vitalício e que lhe fossem

adiantados dois soldos para que pudesse retornar condignamente à Bahia. O Príncipe Dom Pedro também encaminhou, por intermédio da própria Maria Quitéria, uma carta a Gonçalo Alves de Almeida, reconhecendo a importância da filha e onde pedia humildemente, que Gonçalo a perdoasse, o que aconteceu. Na mesma ocasião ela foi reconhecida como “heroína da Independência”.

Já na Bahia Maria Quitéria casou-se com Gabriel pereira de Brito, lavrador, com quem teve uma filha chamada Luiza Maria da Conceição.

Depois de lutar pela herança de Gonçalo tomada por seus irmãos por parte de pai, empobrecida e depauperada, cega e acometida de uma moléstia no fígado, Maria Quitéria morreu em Salvador em 21 de agosto de 1853 aos 61 anos. Está sepultada na Igreja do Santíssimo Sacramento de Nazaré.

Em 1996 passou a fazer parte do Quadro Complementar de Oficiais do Exército e em 2018 passou a integrar o livro de Heróis da Pátria.

-E então, quem levou a melhor? –Perguntou a espada.

-Reconheço, foste tu! –Concluiu a baioneta.

*sargento do setor de logística

 
 
 

1 commento


Silvia Pimentel
Silvia Pimentel
15 dic 2021

A participação da Bahia na sedimentação da Independência do Brasil tornou-se um dos períodos mais notáveis da História do Brasil. O entusiasmo causado a maioria , quando do seu estudo nos bancos escolares era motivo para fantasias e sonhos sobre cada passagem e cada atuação dos nossos bravos combatentes. É talvez a mais bonita passagem ou o mais admirado período da nossa historia,principalmente para nos baianos. O notável ao ler este conto é o transporte imediato para a época tal a riqueza de detalhes. A baioneta impôs- se pela sua força e venceu a espada invasora ! Este Conto é uma viagem no tempo.

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