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A propósito da crise em Cuba

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 17 de jul. de 2021
  • 58 min de leitura

O amigo Cubano


Ticiano Leony

​Quem nasceu na década de 1950 e ainda vive, passou obrigatoriamente pelos anos dos governos fardados. Era uma época difícil, obnubilada pela névoa da repressão do militar aos civis por força dos atos de rebeldia de alguns civis contra o País.

​Estes remanescentes estudaram em colégios secundários, vigiados e infiltrados pelos agentes do governo; alguns professores e também alunos, eram recrutados para relatar casos de subversão entre os colegas, naquele tempo em que o modelo hippie ameaçava o capitalismo e o consumismo com atos de rebeldia inconsequente, cabelos grandes, barbas por fazer, quepes com uma estrela vermelha, cartazes e camisetas de Che, alguma maconha, calças jeans desbotadas, sandálias de couro cru e desobediência civil velada.

​Nas faculdades havia a ordem de proibição das manifestações públicas, a maioria delas encabeçada pelos estudantes e a palavra censurada nas rodas de amigos, quando se dizia que “conversa de mais de dois, é comício”e comício era estritamente proibido.

​Foi em meio a esta efervescência cultural exploradanos festivais de música e nos acampamentos hippies, cheios de cabeças de cabelos criados e com aspecto de sujo, que uma boa parcela da atual liderança brasileira viveu e conviveu. Hoje, 2015, muitos com dinheiro nos bolsos e bem posicionados, mal se lembram do passado, visto à época, como tortuoso.

​Uma das saídas para esfriar a mente dos filhos de quem possuía algum recurso a mais, era enviar os rebeldes sem causa que pudessem ensaiar algum problema com a ordem vigente, para o exterior, num exílio semi-involuntário:

-Filho, –dizia o pai preocupadíssimo com a posição política do pimpolho causador de problema –você vai passar uns dias com sua tia em Miami.

​Aquilo às vezes soava como uma agressão aos princípios do camarada adorador da União Soviética, de Mao, Ho Chi Min e de Fidel e contra o imperialismo americano opressor dos fracos e castrador dos oprimidos.

​Mas não tinha jeito. De passagem na mão direita e passaporte na esquerda, o revolucionário partiu a bordo do Boeing 707 da Varig para a ensolarada Flórida. A tia, que ansiosa esperava no aeroporto, o levou para casa num subúrbio de classe média, perto da Calle Ocho. Tudo era novidade: as ruas planas e de traçado reto, bem pavimentadas, os carrões imensos, muitos conversíveis, muitas ruas com as casas sem muros nem grades, os postes de madeira e a conversa rolando no Malibu de vistoso estofamento de couro vermelho.

​Em casa, já acomodado, inconformado com aquele progresso artificial de ruas iguais e casas idênticas, o candidato a herói baiano botou a cabeça para pensar e jogou a toalha. Faria o melhor para aproveitar o tempo enquanto estivesse no caribe americano.

​Mais dois dias e já estava acostumado com o que a hospedagem lhe proporcionava. Tinha que lavar suas próprias roupas, preparar seu café da manhã, lavar a louça que usasse em qualquer ocasião, esquentar o pão, tirar a manteiga da geladeira, fritar os ovos, enfim, a tia fazia tudo sozinha, ajudada pelos filhos e por quem se abancasse na sua casa, fosse exilado compulsório ou convidado obrigado.

​Os programas eram sempre culturais. Consertos ao ar livre, cinema, filmes clássicos ou alternativos de vanguarda, exposições e palestras, peças de teatro, vernissages e noites de autógrafos. E olhe que estavam de férias. Como a televisão ainda era incipiente, ninguém ligava para os programas.

​A comunidade latina fervilhava. A todo o momentodivulgava-se os acontecidos na República Dominicana de Joaquin Balaguer, no Haiti de François Duvalier, o Papa Doc e claro, na Cuba de Fidel Castro. Este era o maisatuante, porque a repressão em Havana era de arrepiar os cabelos e os inconformados lançavam-se Mar do Caribe a dentro em busca da liberdade na Flórida. São apenas 157quilômetros da ilha até Key West, uma tentação para quem se vê condenado sob a baioneta comunista sempre a um passo do paredon.

​Mas uns poucos cubanos eram aquinhoados pelo direito de imigrar. E o critério para isto, pelo que o amigo cubano contava, era aleatório ou demandava algum lance de muita sorte.

​O Baiano que folgava na casa da tia foi aos poucos se enredando com a comunidade latina, em especial os cubanos. Imaginava ele que ter um contato mais estreito com os fugidos da tirania castrista, lhe proporcionaria um grau a mais na hierarquia do Diretório acadêmico da faculdade, um ninho de comunas e subversivos de alto grau teórico da ideologia marxista. Além do que ele se gabaria dos goles de autêntico rum aniejo 3.

​Começou a frequentar a casa do amigo cubano e aos poucos foi entendendo o castelhano que a família falava com entonação e muita graça, principalmente quando enalteciam Havana, as praias Del Este, Boca Cega até a mais distante e paradisíaca Varadero, o mar azul turquesa de Cayo Largo, as blancas arenas de Cayo Coco. Amavam Cuba com uma paixão irritante. E proporcionalmente odiavam aquele que os havia expulsado do paraíso.

-Mas se ustedes amam tanto Cuba, por que se evadiram? –perguntava inquieto o Baiano.

​Manoel, o jovem amigo cubano sempre tergiversava, saía pela tangente, enquanto o pai, professor da Universidade da Florida, de longe, sentado num sofá lendo o Diario Las Americas, prestava atenção por cima das lentes dos óculos, à conversa dos dois rapazes.

​Um belo dia, cansado das evasivas do filho, o senhor professor chamou o Baiano para uma conversa.

-Não sei por que Manoel não lhe conta toda a história –começou dizendo o professor –tem medo de ser mal visto, Manoel? Só porque o seu amigo brasileño ainda está iludido e embevecido com Cuba?

-Mas papá, não combinamos que nossa história ficaria só entre nós? –argumentou o filho

-Sim, mas é sempre bom recordar para que nunca mais alguém caia na conversa destes revolucionários vermelhos que muito prometem e nada cumprem.

​Ao dizer isto o professor chamou os outros dois filhos, Francisco e Juanito, porque achou importante repetir a história que parecia meio esquecida. Aproveitou e chamou sua mulher, Maria do Rosário para participar da palestra.

​​​​​************

​Quando a revolução vitoriosa com a ajuda, enfatize-se, do povo cubano começou a fazer o contrário do prometido, aderindo ao modelo socialista soviético, o jeito foi ir se adaptando aos poucos. Os bens imobiliários foram sendo paulatinamente confiscados ou expropriados. Aumentava o fluxo dos que queriam deixar o país a todo custo. Foi em meio a este caos que o embargo comercial por parte dos Estados Unidos e seus parceiros, começou. E veio o racionamento.

​O Professor Juan Enrique ensinava matemática na Universidade em Havana. Era pós-graduado nos Estados Unidos onde mantinha as amizades da época dos estudos. A comunicação com seus antigos colegas americanos era difícil, as cartas eram violadas, toda a correspondência passava por censores. Devido ao racionamento, o professor tinha muita dificuldade para alimentar a mulher, a si próprio e àqueles três varões que cresciam e tornavam-se, a cada dia, mais famintos.

​De posse dos bilhetes de racionamento, mesmo com a libreta em punho, muitas vezes o professor voltou para casa de mãos vazias. Havia sido obrigado a dividir a casa que fora de seus pais, com mais três famílias. Felizmente eram famílias remediadas, porém de gente educada. Acomodavam-se como podiam, as senhoras faziam um compartilhamento de quase tudo, os homens dividiam as tarefas mais pesadas da casa e como o professor era o proprietário original, os outros, ainda constrangidos, permitiram que ele ocupasse os melhores aposentos, como uma compensação pelo fato de ele conhecer as instalações elétricas e hidráulicas da construção. Isto no início fez diferença, mas com o passar do tempo, quando deixou de haver água nas torneiras e a energia elétrica a ser racionada, era um dado indiferente. A cozinha e a área de serviço eram únicas, de modo que cozinhavam e lavavam pratos e roupas solidariamente. A sala de baños também era única, embora grande, e também era o mais civilizadamente possível, solidariamente compartilhada. Havia uma espécie de fraternidade entre as famílias, tanto dos ocupantes quanto dos ocupados. Mesmo porque não havia outro jeito.

​As outras três famílias só falavam em fugir para a Florida, não suportavam mais a opressão. O chefe de uma destas famílias, Señor Honorio, era da zona rural, distante cerca de três horas de ônibus de Havana. E ele propagandeava que lá o passadio era melhor. Os vizinhos e sua família cultivavam víveres e gêneros alimentícios e quase não dependiam dos vales de racionamento. Mas, como ir até lá buscar alimento? Não dispunham de uma autorização para pegar o ônibus nem dinheiro para adquirir as batatas, o inhame, a beterraba, o chuchu, os ovos, muito menos as carnes que estavam a um preço pela hora da morte. E apesar de estarem numa ilha do mar do Caribe, rodeados de peixe por todos os lados, era terminantemente proibida a posse de barcos para dificultar as fugas, de modo que o pescado também era escasso e por isso mesmo, caro.

​Este señor Honorio, barbeiro por profissão, proprietário de uma pequena tenda próxima à Universidade, resolveu pedir autorização ao chefe localpara visitar a família em Villa Hermosa. Com muito sacrifício, depois de várias visitas ao jefe, muitas idas e vindas, finalmente conseguiu a autorização.

​Partiu no ônibus no terminal do centro de La HabanaVieja. E no outro dia à noite retornou carregado de tudo do bom e do melhor: um cacho de bananas, algumas espigas de milho, feijões e fubá, batatas, chuchus e berinjelas e até um bom bocado de carne suína salgada. Foi uma festa, mas ele esclareceu que a freguesia se fazia impossível tal a quantidade de barricadas na estrada pela guarda revolucionária em busca de contrabando e dissidentes. Então, o que fazer?

​Honório esclareceu aos outros três que sua família e os vizinhos aceitariam trocar os charutos das cotas oficiaisdos moradores de La Habana, por alimentos como aqueles.

–Então estamos salvos. Já que nenhum de nós fumamos, poderemos trocar tudo. E cada semana vai um de nós –sugeriu o professor.

​Assim ficou combinado. Sairiam sempre no ônibus de sexta feira à noite e voltariam no sábado à noite. Cada um de uma vez para não levantar suspeitas. Mas, e as autorizações para cada um viajar? Aí estava o problema. Resolveram conversar na Estação Central de ônibus. O professor foi no dia seguinte depois da aula e tentou adquirir uma passagem para Villa Hermosa. O vendedor atrás do velho vidro opaco era um guarda revolucionário, barbado e mal encarado e podia ser visto por um orifício retangular na altura dos olhos.

-O que desejas em Vila Hermosa? –indagou mal educado.

-Visitar alguns parentes –respondeu o professor.

-E como se chamam? –voltou a arguir o soldado.

​O professor começou a ficar desesperado, não estava treinado suficientemente para um embate como este.

-Veja –disse ele –desculpe-me desta vez, mas esquecimeus documentos em casa. Vou deixar para ir na próxima semana.

​E afastou-se cauteloso enquanto era observado pelo soldado por trás do vidro. Quando alcançou a rua, já mais aliviado e com a respiração regular, eis que surge em sua frente outro soldado. Usava uma farda cáqui, quepe de revolucionário e um fuzil numa das mãos.

-Onde querias ir? –perguntou.

-Eu? –respondeu nervoso o professor.

-Si, usted –ralhou o soldado.

-Bem, eu queria ir visitar uns parentes em Vila Hermosa, mas esqueci os documentos em casa. Não tenho como comprar as passagens.

-Meu colega, lá atrás do vidro, me pediu para lhe ajudar. –falou o soldado em voz baixa.

-E como será que o senhor pode me ajudar? –insistiu o professor.

-Bem, podemos trocar charutos pelas passagens de ida e volta.

-E quantos charutos necessitarias usted? –perguntou o professor mais confiante.

-Cinco para ir, cinco para voltar –disse o soldado.

-Não dispomos desse tanto, infelizmente –falou o professor Juan.

-De quanto dispõe usted?

-De três para ir e três para voltar. Mesmo assim vou precisar tomar dois emprestados ao meu vizinho.

-E que dia necessitas ir?

-Na próxima sexta-feira –respondeu Juan

-Venha aqui na quinta de tarde. Atrás daquela barraca de temperos –apontou o soldado –traga os charutos que lhe darei os bilhetes.

-Mas o senhor vai me dar os bilhetes de ida e volta? –duvidou o professor Juan.

-Claro. Ou não pretendes voltar?

-Não, de forma alguma.Claro que pretendo. Mas o bilhete de volta só está disponível lá em Villa Hermosa!

-Bem, o senhor vai viajar com salvo conduto, não com bilhete. E o salvo conduto vai lhe dar direito de ir e vir.

-Humm...Está combinado. Na próxima quinta-feira, quatroda tarde venho aqui com os charutos.

​E despediu-se do soldado, mal acreditando na história. Aquilo bem que poderia ser uma armadilha para pegar quem estivesse infringindo a lei ou pensando em desertar. Além do que, ele não tivera coragem de indagar o nome do soldado e sendo todos tão parecidos, de cabelos grandes e barbas negras por fazer, seria difícil reencontrá-lo na quinta feira.

​Chegou em casa e reuniu os vizinhos. Contou o acontecido. O señor Epifanio, outro dos ocupantes, ofereceu-se para ir no lugar do professor Juan.

-Não, de jeito algum. Não saberias quem é o tipo e poderias cair numa cilada. Façamos o seguinte: vamos os dois separadamente. Lá em frente à barraca de temperos vou apenas eu –disse o professor –se der tudo certo voltamos juntos para casa. Senão...saberão onde encontrar-me. A sorte a Deus pertence!

​E assim, depois de passar a noite insone e de ministrar a pior aula de sua vida, os dois saíram de casa em direção à estação Central. Pegaram uma carona numa carroça puxada a burro e em pouco mais de quarenta minutos chegaram perto do ponto de encontro. Epifanio e Juan Enrique saltaram, agradeceram ao condutor e ficaram esperando um pouco, olhando em direção à barraca de temperos, mas ainda distante. Já perto das quatro horas, com os charutos enrolados num saco de papel pardo, o professor se encaminhou para a barraca. Foi lentamente, chapéu de palha na cabeça, as mãos suando devido ao medo, em meio a tabuleiros de venda de produtos baratosespalhados pelo chão da praça em frente à Estação.

​Quando estava a duas braças do tabuleiro de temperos, reparou que à mesma distância vinha um soldado. Um apenas queria dizer que era o fulano. Se viessem dois ou quatro, seria uma busca para apreensão, significaria que ele estava sumariamente condenado. Mas o fardado estava sozinho e aparentava ser o próprio.

​Cumprimentaram-se discretamente. O soldado tirou o quepe da cabeça e com a outra mão apoiou o cabo do fuzil no chão. Pegou o quepe e o virou. Era onde estava escondido o salvo conduto. Ele fez uma mesura para o professor como se o estivesse cumprimentando. Mas sem falar uma única palavra. Olhou nos olhos do professor e desviou o olhar para dentro do quepe. Felizmente Juan Enrique era uma pessoa esclarecida e para quem é inteligente um olhar vale tanto quanto uma longa explicação. Imediatamente o professor, tirando forças da necessidade pela qual seus filhos estavam passando, levou o pacote de charutos ao quepe e com a mesma destreza retirou do quepe o salvo conduto. Imitou o soldado retirando o chapéu, como se o estivesse cumprimentando, e colocou no bojo do sombrero os documentos.

​Se eles tivessem combinado, não teria dado tão certo! De longe Epifanio observava os movimentos e achava que o professor

era um velho amigo do soldado. Nem sequer percebeu a troca! Ao caminhar até Epifanio na beira da calçada, o professor estava lívido. Nunca imaginara que fosse capaz de fazer uma proeza daquelas, digna de Mata Hari, a lendária agente secreta da qual ele conhecia as histórias.

​Andaram durante um tempo até se dissipar a adrenalina. Só então o professor disse:

-Parece que deu tudo certo. Pelo menos o salvo condutoestá aqui no meu chapéu. Só não sei se é de fato o documento ou apenas papel em branco.

​Caminharam mais uma hora, a noite já caía, a temperatura amainava e era agradável andar sob as estrelas nas ruas escuras e sem iluminação de Havana Velha.

​Em casa, à luz de velas e candeeiros, conferiram o papel. Estava tudo em ordem. O horário do transporte, o destino de ida e o horário e destino da volta. Tudo perfeito. Agora era só esperar amanhecer o dia para escrever numa linha em branco do documento, o nome do portador do salvo conduto: Juan Enrique, Honorio, Epifanio ou Sebastian, o mais jovem dos señores que habitavam a casa.

​No dia seguinte cedo, cada qual seguiu para a sua ocupação: Honorio foi para a tenda de barbeiro, Sebastianpara a construção já que era pedreiro, Juan Enrique para o universidade e Epifanio para a repartição pública onde trabalhava como estafeta. ​Combinaram encontrarem-se antes da siesta para resolverem quem iria à noite para Villa Hermosa.

​Assim que terminaram o almoço, sentaram-se em volta da mesa. Honorio informou os nomes dos parentes e os nomes de família para o caso de alguma averiguação. Todos decoraram tudo: Tia Ercilia, Tio Pedro, Hernando, Tio Carlos, Raulino, Cecília, Ramon, Felisberto, Tia Leocadia, Julia e as descrições de cada um. Depois decidiram que Juan Enrique iria desta vez. Honorio tinha ido a semana passada, dava na vista, Epifanio era funcionário público e deveria treinar mais e Sebastian ainda era novo, poderia cometer algum deslize. O professor pegou o tinteiro e a pena e escreveu em letra cursiva preta de boa caligrafia: Juan Enrique Barral Vilan. Tudo pronto.

​No fim da tarde, enquanto o sol se punha no Mar do Caribe, vermelho como brasa quente, Juan Enrique saiu de casa. Trajava roupa simples de algodão claro, chinelões e seu chapéu de palha. Caminhou durante vinte minutos e acabou pegando uma carona numa bicicleta de um conhecido da universidade. Era estranho um professor de matemática, pós graduado, bi-lingue, estar indo àquela hora para a Estação Central. Mas, paciência, precisava dos víveres para os chicos, para os dele e para os chicos e niñas dos outros.

​Pediu ao dono da bicicleta para deixá-lo na calçada em frente da estação. Agradeceu muito e imaginou que seria uma ótima pedida comprar uma bicicleta de segunda ou terceira mão. Entrou na estação, pouco movimentadaàquela hora. Caminhou para os fundos do velho prédio onde os ônibus ficavam estacionados. Estava calmo, já não haveria volta, seria o que Nossa Senhora de Guadalupe quisesse. Seu sacrifício - se acontecesse algum imprevisto - havia sido por uma boa causa.

​Havia três velhos ônibus estacionados junto à calçada. Um verde oliva, uma amarelo claro, desbotado e um acinzentado. Eram de pelo menos duas décadas passadas. Tinham capô na frente como num automóvel grande, o para-brisa era dividido em dois e só havia uma porta de entrada. Juan Enrique não sabia qual deles iria para Villa Hermosa. Na entrada de cada um havia um daqueles soldados de farda caqui, fuzil na mão, quepe e barba por fazer. Encaminhou-se ao primeiro.

-Buenas noches, señor –cumprimentou o professor.

-Que desejas? –respondeu o soldado.

-Qual destes vai a Villa Hermosa?

-O amarillo, aquele ali, ó –disse apontando o ônibus do meio.

​O professor foi até o outro soldado, tirou o chapéu em sinal de respeito e apresentou o salvo-conduto. O soldado olhou, depois encarou o professor nos olhos. A luz do sol já havia ido embora em sua plenitude. Apenas um lusco-fusco de fim de tarde ajudava às lâmpadas elétricas da plataforma da estação. O soldado mal conseguia enxergar a cartela do salvo conduto.

-Como te chamas? –perguntou ao professor.

-Juan Enrique Barral Vilan.

-E o que vais fazer em Villa Hermosa?

-Vou visitar uma tia que está muito velhinha e adoentada. Talvez nunca mais a veja com sua preciosa vida.

-E como ela se chama? –quis saber o soldado enxerido, afinal, mal ele entrasse no ônibus ou não e ele já teria esquecido de tudo.

-Tia Ercília –respondeu prontamente o professor.

-E quando voltas?

-Amanhã. Não posso me demorar mais, mesmo que quisesse. O jefe da repartição só me deu um dia de folga.

-Muito bem. Pode embarcar –autorizou o soldado devolvendo o salvo conduto.

​O ônibus era velho, muito acabado e não havia lugares marcados. Quem chegasse primeiro pegaria os melhores assentos, com um resto de almofadas rasgadas e com aspecto de sujas, que a escuridão escondia, mas que ajudava a dar algum conforto da chapa de ferro dos assentos e encostos. Juan Enrique sentou-se bem no centro do ônibus, seguindo a recomendação de Honorio. Havia mais meia dúzia de passageiros. Todos vestidos do mesmo modo. Ele estava levando um embornal de palha, com dez charutos no fundo, escondidos sob uma muda de roupas, uma escova de dentes bem usada, um resto de dentifrício e uma garrafa de água tampada com uma rolha.

​Depois que se sentou junto à janela, acomodou o embornal à frente dos joelhos e ajustou a vista. Passou a examinar o veículo calmamente. Janelas de vidros quebrados, que não fechariam caso houvesse chuva ou poeira. Mas este velho ônibus já teve seus dias de glória –pensou o professor.

​Em poucos minutos, mais dois passageiros entraram, depois o motorista rechonchudo e por último o soldado. Ele jamais imaginou que o soldado escoltasse o veículo durante a viagem, isso não haviam lhe dito. O motorista, avançado no peso, de chapéu de palha, olhou para seus passageiros, deu boa noite e se sentou no seu lugar atrás do volante. Deu partida no motor, manobrou o veículo, acendeu as luzes e partiram chacoalhando em direção aos limites da capital. Era um andar lento, balouçante e barulhento. O cheiro de combustível queimado de vez em quando invadia a cabine e causava algum mal estar. Mas junto à janela dava para suportar bem.

​Na saída da cidade pouco iluminada, antes de pegar a estrada propriamente dita, havia uma primeira barreira com soldados, um jipe do exército e uma barricada com sacos cheios de areia. O ônibus parou, a porta abriu e um soldado entrou no veículo.

-Buenas noches –disse enquanto andava em direção ao fundo do ônibus olhando cada passageiro e iluminando seus rostos com uma lanterna de metal brilhante. Passou pelo professor, foi até o fundo, examinou os assentos desocupados. Fez meia volta enquanto mudava o fuzil de mão. Desejou boa viagem e saiu pela porta.

-Lá vamos nós –disse o motorista enquanto fechava a porta. ​Viajaram sem parar por mais de uma hora. Outra barreira. Mesmo procedimento.

-Lá vamos nós –tornou a repetir o motorista desviando da barreira à frente.

​Outra hora de viagem e outra barreira, esta na entrada de Villa Hermosa. O professor usava um relógio de pulso antigo, marca Classic, apertado bem acima do pulso para que ninguém visse. De vez em quando disfarçava e olhava a hora. Calculou certo, já estavam chegando.

​O procedimento foi idêntico. Depois de liberarem o ônibus, o soldado da escolta saltou e os passageiros acabaram de chegar sem a incômoda companhia. O motorista estacionou o veículo em frente a uma estalagem antiga, iluminada por lampiões. Abriu a porta e ordenou que os passageiros descessem. O professou saltou em meio aos demais. Havia algumas poucas pessoas na calçada de terra em frente à estalagem. Ele não conhecia as pessoas que havia vindo procurar e não poderia sair perguntando. Mas Honorio havia ensinado a lição com muitos pormenores de modo que o professor não teve dúvida de qual direção pegar. Caminhou no sentido da igreja, pegou uma viela lateral à direita e poucos metros adiante a vila acabava. Tudo muito escuro, apenas a luz das estrelas mostrava o caminho. Na frente de umas árvores altas havia um portão de madeira e Honorio havia lhe falado dele. Bateu palmas.

​Em poucos minutos apareceu um senhor com um candeeiro na mão. Iluminou o rosto do professor. E o dele também ficou no claro, então Juan Enrique perguntou:

-Señor Raulino?

-Não, sou Ramon. E quem é usted?

-Sou vizinho de Honorio, seu sobrinho.

-Ahn!?

-Sim, venho de La Habana. Honorio esteve aqui há duas semanas para visitá-los.

-Ah! Sim. Recordo-me, como não? Passe, passe –disse enquanto abria o portão.

​Ramon caminhou à frente, iluminando o caminho com o professor no seu encalço. A vegetação densa impedia a vista da casa enorme atrás das árvores. Toda iluminada por lampiões, deveria ter sido a sede de uma grande fazenda. Entraram na casa e o professor pode ver que muitos habitavam a mansão. Havia mulheres, meninase meninos e crianças. As menores já dormiam nos colos das mães.

-Buenas noches! –cumprimentou o visitante

-Buenas –vários responderam em uníssono.

-Chamo-me Juan Enrique e sou vizinho de Honorio. De La Habana.

-Ah! Sim claro –falou uma senhora de cabelos grisalhos enquanto se levantava de uma poltrona de madeira de balanço. –Sou a tia Ercilia.

​Depois das apresentações, convidaram Juan Enriquepara a mesa grande. Ofereceram uns biscoitos e um bule de café que restava sobre o fogão à lenha. Sentaram-se com ele apenas os homens. Carlos, Ramon, Raulino e Pedro.

-Senhores –começou Juan Enrique –Devem saber das necessidades que estamos passando.

-Sim, temos vagas notícias. Honorio nos contou como a vida está difícil.

-Ele levou daqui algum alimento. Bananas, milho, feijão, um pouco de carne de porco. E disse que talvez os senhores aceitassem fazer um escambo deste tipo de mercadorias por charutos das cotas que recebemos do Gobierno.

-E não haveria um risco para nós? Afinal esta propriedade é do Estado. Foi confiscada de americanos que plantavam cana e produziam açúcar e rum. Nós somos apenasmoradores. Nunca conseguimos produzir nada de mais valia. O canavial se acabou assim como as instalações industriais. Hoje só há mato e nossas pequenas hortas para nossa própria sobrevivência. Não podemos vender, nem comercializar. Mas o excedente –prosseguiu Pedro –podemos trocar por outra coisa mais interessante! –e deu um largo sorriso no que foi acompanhado pelos demais.

-Só que não podemos transportar muito. No ônibus podemos apenas levar o que as mãos aguentam senão dá na vista e se eles perceberem confiscam e ainda podemos ser presos. –disse o professor.

​Era um tipo engraçado de relação comercial que estava prestes a começar. O professor que se identificouapenas pelo nome, como “Juan Enrique vizinho de Honorio” e pronto.Nada de nomes de família. Os fornecedores também não fizeram questão de saber mais detalhes: nesta época, quanto menos se soubesse uns dos outros, tanto melhor. Assim as delações ficavam mais difíceis e restritas à visão, ao testemunho, dificílimo devido à semelhança entre as pessoas. Os tipos físicos eram muito parecidos e eles faziam questão que assim fosse. Tanto que usavam o mesmo bigode, o mesmo corte de cabelos, a mesma roupa e os mesmos chapéus.

-Senhor –disse Raulino –Vamos tratar de descansar. A sua foi uma viagem longa e o nosso dia também não é fácil. Vivemos aqui eternamente com a possibilidade de sermos despejados porque não conseguimos produzir o que eles gostariam. Amanhã teremos o dia todo, seu ônibus só sairá depois que chegar o mesmo que o senhor veio hoje. Ele retorna no mesmo dia e amanhã vem outra vez.

​Assim acomodaram Juan Enrique num amplo quarto com mais alguns rapazes adolescentes. Os colchões eram de palha mas não havia cama para todos de modo que um rapazinho mudou-se para um colchão no chão cedendo sua cama para o professor. A roupa de cama era muito limpa, tudo muito simples, sem luxo, mas cômodo e asseado.

​Juan Enrique cansado como estava pegou no sono imediatamente. Não sentiu os mosquitos nem se incomodou com os barulhos da noite no campo: o coachar dos sapos e rãs, a cantoria dos grilos, o vento nas folhas das árvores que apropriadamente escondiam a casa dos olhares mais indiscretos. Pelo menos havia paz.

​O dia amanheceu do mesmo jeito. Quando abriu os olhos e acomodou a vista, percebeu que apenas ele ainda estava na cama. O teto do quarto de madeira ripada escondia uma pintura de época, flores e frutas em vasos de porcelana, bem ao estilo veneziano. Um velho lustre inútil pendia do centro do teto, que, embora em desuso, estava limpo como se fosse precisar ser aceso logo mais à noite. As outras cinco camas estavam arrumadas, com os lençóis dobrados e os travesseiros em seus devidos lugares.

​O professor sentou-se, colocou os óculos que passaram a noite descansando no batente de uma janela, fez uma rápida oração a Nossa Senhora de Guadalupe pedindo proteção e levantou-se. Seus pertences estavam bem ao lado da cama no alforje. Pegou a pasta de dentes e a escova. Não havia ninguém nem se ouvia vozes. Caminhou até a porta do grande quarto. Um corredor largo como uma galeria e várias portas altas. Encaminhou-se para uma saída no fim do corredor. O dia estava esplêndido. A região de árvores altas de verde intenso, deveria ser de ótimas terras para a agricultura. Levantou o punho da camisa e olhou o relógio: sete e meia da manhã. Dormira bastante, cansado física e mentalmente que estava. Mas a opressão tem destas coisas, a pessoa acaba se acostumando, a adrenalina vai faltando, o sangue vai esfriando e no fim tudo se acomoda.

​Onde ir? Não havia ninguém a vista. Se pelo menos ouvisse vozes, iria na direção delas. Mas nada, apenas o canto dos pássaros e o vento leve nas folhas. Resolveu voltar para dentro da grande casa. No outro extremo do corredor uma sala ampla com móveis de época, com certeza dos antigos donos da propriedade alijados de seus pertences pela revolução. Saiu para a varanda larga onde restavam móveis de ferro fundidos. No tampo de uma pequena mesa redonda rendada, uma placa de metal indicava uma fundição em Londres. Precisava de um banheiro. Desceu uma escada que dava para o pátio. No outro lado havia uma edificação quadrada e baixa, mas nos mesmos moldes da casa principal. Devia ser a casa de banhos. Uma porta dupla com veneziana dava acesso ao interior. Uma sala toda revestida com mosaicos no piso e nas paredes e várias portas fechadas. Encaminhou-se para uma delas. Abriu com cuidado. Era um banheiro com pia, vaso sanitário e chuveiro, isto sim um luxo. E luxo maior se houvesse água na torneira. Foi até junto da pia e abriu. Um jorro generoso de água fria e limpa saiu da bica. Fechou a porta do pequeno aposento, cumpriu seu ritual matinal, lavou o rosto e escovou os dentes. Olhou-se no espelho bisotado. Nunca imaginara na vida, que no interior de sua querida Cuba, pudesse existir um luxo como aquele. E que, sem a conservação, um dia tudo se acabaria.

​Saiu da sala de banhos para o pátio. Ao virar o rosto para a estrada por onde entrara na noite da véspera, deparou-se com seus anfitriões que chegavam, todos juntos, homens e mulheres, os adolescentes e as crianças. Parecia um exército de Brancaleone. Faziam uma pequena algazarra nas conversas e nos risos.

-Buenos dias, señor –cumprimentou tio Pedro –passou a noite bem? Descansou bastante?

-Sim, amigo. Até perdi a hora.

-Desculpe-nos não termos avisado, mas é que saímos cedo para a missa do Padre Figueiroa. Nesses tempos de agora, só nos permitem a prática da religião em horários que não atrapalhem o trabalho.E o jefe da nossa cooperativa agrícola é muito exigente, obediente ao comandante com medo de represálias. Usted sabe como é...

-Sim claro que sei, padecemos de outros males como o que me traz aqui –respondeu o professor.

-Vamos, vamos para casa tomar o desayuno –convidou tia Ercilia.

​Seguiram para casa grande, atrás dos que já tinham ido cumprir seus afazeres. Este ritual da missa era sempre aos sábados e implicava em tomarem um café da manhã diferente dos outros dias. Os adultos sentaram-se em volta da mesa da cozinha. Cabiam doze pessoas em volta de um grande bule de café. Juan Enrique há muito não via tanta fartura. Havia broa de milho, raízes de inhame e aipim e plátano cozidos e até ovos escaldados com carne defumada, um luxo impensável se dependesse das cotas das libretas.

​Juan Enrique saboreou de tudo que pode, lamentando que os filhos jamais fossem ver um festival como aquele.Depois da lauta refeição passaram à varanda. As mesinhas e cadeiras de ferro fundido eram complementadas por pequenos e toscos bancos de madeira. Juan Enrique tomou a palavra:

-Señores, como Honorio me garantiu, aqui há produção de víveres de sobra. Bananas, ovos, raízes, berinjela e beterraba, pude constatar isso muito bem no nosso saboroso desayuno. Precisamos um suprimento semanal como o que ele levou.

-Sabemos, señor, quanto estão necessitados –disse Ramon –E podemos ajudar-lhes. Mira, esta era uma grande hacienda de cana de açúcar, como pode ver. Foi expropriada de uma família de gringos que acabou largando tudo e indo para a Florida. Inicialmente éramos apenas Carlos e Pedro e suas famílias. Depois os outros foram chegando. Demos sorte de sermos todos do bem.

-O mesmo aconteceu em minha casa. Os ocupantes são todos ótimas pessoas assim como suas famílias –disse Juan Enrique.

-Entonces –continuou Ramon – Temos de tudo aqui, mas não temos o que podemos vender no mercado negro que são os charutos por serem mais facilmente transportados. Há uma praia aqui perto onde se negocia com tabaco. Tabaco não tem origem, dá em toda a ilha. Trocamos seus charutos pelos víveres.

-Em que bases? –quis saber o professor.

-Cada charuto de seis polegadas dois quilos de víveres, ou meio de carne salgada. –informou Ramon.

-O que você me diz de três quilos por charuto? Afinal, ainda tenho que transportar tudo e correr o risco que é só meu. Ou de quem vier no meu lugar. Quanto à carne estou de acordo.

​Ramon olhou para Raulino em busca de um sinal de anuência ou discordância, mas foi Tio Pedro que concluiu:

-Está bem assim. Precisamos ajudar os outros. Não é só de valores materiais que sobrevive a humanidade, não foi o que Padre Figueiroa disse hoje na homilia? Que adianta irmos à igreja e não seguirmos o que prega a religião cristiana? Se não seguirmos o que professa a Bíblia, seremos como os marxistas que nos governam agora.

​Todos balançaram as cabeças em sinal de acordo. Convidaram Juan para visitar as hortas e pomares. Levantaram-se e pegaram os chapéus de palha e caminharam em direção à mata. Bem adiante havia uma picada estreita. Nem parecia um acesso. Mais alguns metros e Juan começou a perceber a clareira e o barulho de vozes. Pelo lado de dentro da vegetação espessa, eles haviam aberto uma clareira de mais de um hectare, talvez dois, mas Juan não tinha muita noção de tamanho de áreas assim no campo. Era um roçado bem grande a seus olhos. Havia de tudo plantado numa organização exemplar. Num limite havia bananeiras plantadas, mais para o centro, dezenas de leiras com todos os tipos de hortaliças, pimientos, mais adiante uma roça viçosa de aipim, enquanto o inhame e a batata doce enramavam no extremo das leiras. Os pés de berinjelas floresciam ao lado de um grande caramanchão com chuchuzeiros. Foram caminhando entre as leiras e plantas enquanto Ramon explicava os procedimentos e de como faziam para não perder as sementes. Bem ao fundo da clareira havia outro trecho de mata com outra picada. Entraram e encontraram o chiqueiro com os porcos e os cercados com toda sorte de aves, desde galinhas coloridas até patos e marrecos que se esbaldavam num pequeno lago de água escura.

​Juan então disse que havia levado seis charutos. Fizeram a conta mentalmente e ele disse o que levaria desta vez. Nada era anotado para não deixar rastro. O professor voltou com Pedro e Carlos para a casa enquanto Ramon e Raulino providenciavam a encomenda.

​Quando chegaram com os víveres frescos recém colhidos, as berinjelas estavam com as cascas brilhando, as bananas quase maduras, cebolas, hortaliças e raízes colhidas na hora. Quinze quilos de mantimentos e ainda deram de presente carne salgada e uma dúzia de ovos embaladas em palha seca. Como transportar aquilo tudo? E se os soldados vissem e criassem caso?

​Juan foi ao quarto e pegou os charutos no alforje. Entregou solenemente a Ramon que cheirou o fumo e deu uma larga risada. Beberam uma dose de rum clandestino fabricado ali em Vila Hermosa por um vizinho e ficaram conversando, trocando ideias e informações dos novos e tenebrosos tempos para a ilha. Era comum entre todos oamor que sentiam pela Pátria surrupiada que foi um dia rica e prestigiada. Cada qual contou sua história, Tio Pedro era dali mesmo, tinha uma grande mercearia na cidade, era um comerciante de sucesso e vendia até ferramentas importadas da Inglaterra. Carlos tinha um açougue. Comprava o gado e o porco de Ramon e de Raulino que eram criadores e abatedores. Com a revolução foram expulsos de suas terras. A sorte foi terem encontrado esta fazenda abandonada, expropriada, e ninguém entendia porque não havia sido ocupada. Os primeiros a chegar foram Pedro e Carlos, que são irmãos. Depois vieram Ramon e Raulino também irmãos que trouxeram os cunhados Hernando e Felisberto, mais jovens e mais dispostos. Estavam ali há vários anos, mais de quinze e sem serem incomodados, acreditavam que por puro golpe de sorte.

​Juan almoçou como há muito não fazia, a ponto de nem se lembrar do sabor de certos alimentos. Comeu frango refogado, arroz natural, feijão com carne de porco salgada. Para ele tudo aquilo era um luxo!

​Depois da siesta começou a se preparar para pegar o ônibus.

Estava com os nervos à flor da pele, não sabia o que poderia acontecer se fosse pego. Já era noite quando Juan atravessou o portão da entrada na rua lateral da igreja. A noite escura envolvia a tudo com seu manto negro o que favorecia a caminhada silente de Juan Enrique. Ramon resolveu de última hora acompanhá-lo até perto da estalagem. De longe, embaixo de uma frondosa figueira, ficaram esperando o veículo chegar. De vez em quando Juan levantava a manga da túnica e olhava o relógio.

-Señor –disse Ramon –seria muito difícil conseguir um relógio para nós? É só o que não temos. Nem de pulso, nem de bancada, nem de parede. Ficamos calculando as horas pelo sol e pelas estrelas. Pero la diferencia es mui grande!!!

-Vou ver o que posso fazer para conseguir comprar e trazer! Mas está prometido –disse o professor. –Mas diga-me Ramon, uma coisa que me deixou muito curioso em relação a tudo isto. Como conseguem água encanada na sala de banhos e na cozinha?

-A hacienda destes gringos era muito evoluída. Temos uma boa cisterna e uma bomba manual que batemos três ou quatro vezes ao dia para uma dorna que fica num elevado. Daí a água vem por gravidade. Um sistema engenhoso que cuidamos com o maior apreço. Não temos luz, mas temos água encanada com fartura. –e deu uma risada contida.

​Foi quando ouviram o barulho do motor do ônibus. Os faróis amarelados e mortiços iluminavam fracamente a estrada. Deram mais um tempo para os passageiros desembarcarem. Quando acharam o horário conveniente, Juan despediu-se de Ramon, agradeceu e de posse de seu tesouro caminhou para a estalagem como quem caminha para o cadafalso. Na entrada do ônibus não havia ninguém, o soldado deveria ter ido ao banheiro ou tomar um gole de rum. O motorista também não estava e não havia nenhum outro passageiro. Juan aproveitou, entrou no veículo e depositou os víveres que estavam num grande amarrado de palha seca de banana, à frente de um dos bancos. Colocou seu alforje por cima do fardo e desceu do ônibus. Ficou por ali na penumbra esperando que alguém chegasse. Quem compareceu primeiro foi o motorista. Era o mesmo da véspera.

-Buenas noches, señor –cumprimentou. –já de volta hoje?

-Sim, já de volta. A que horas saímos? –perguntou o professor.

-Assim que cheguem os passageiros e a nossa escolta.

​Logo depois chegaram mais duas pessoas. E o soldado que também era o mesmo da véspera. Examinou o salvo conduto negligentemente e mandou Juan entrar. Depois entraram os demais passageiros. O motorista embarcou e por último o soldado.

O veículo logo se pôs a caminho. Na barreira da saída de Vila Hermosa não havia qualquer vigilância àquela hora de modo que o ônibus não parou. Na barreira seguinte os soldados dormiam sobre os sacos de areia e o veículo nem diminuiu a marcha. Pouco antes de uma hora da madrugada chegaram aos limites da capital. Aí havia barreira. O ônibus parou, abriu a porta, o soldado de escolta se levantou e outro entrou no veículo com sua lanterna cromada. Olhou cada um dos passageiros, foi até o último banco, fez meia volta, caminhou até a frente do ônibus e desceu. Nem um boa noite, nem uma palavra.

​O veículo seguiu até a Estação Central. Estacionou ao lado do meio fio, os demais passageiros saltaram atrás do soldado da escolta e Juan Enrique ficou ali, imaginando como carregar seu alforje e o fardo. A esta hora já havia soado o toque de recolher. Como ele faria para seguir até em casa com mais de quinze quilos de peso às costas? E se fosse parado? Poderia ter pedido a um dos outros que viesse lhe ajudar, mas como vir se havia o toque de recolher? Tudo que estes comunistas faziam era mal feito. Se o ônibus era autorizado a trafegar após as nove horas da noite, quem estivesse nele deveria poder seguir andando até sua casa sem ser importunado.

-Señor –Juan Enrique ouviu a voz pastosa do motorista bem à sua frente –precisa desembarcar, vou levar o veículo para a garagem e já é tarde.

-E onde fica esta garagem? –perguntou o professor.

-Na Calle Andina, no caminho da Universidade.

-Que coincidência –disse Juan. E será que o señor poderia me dar uma carona? Moro lá perto.

-Bem –disse o motorista –é arriscado para mim, não se pode transportar estranhos num veículo do povo.

-Ih! –pensou o professor –este aí é adepto da revolução.

​Juan lembrou-se que Tia Ercília havia lhe dado meia dúzia de bananas amarelinhas para a viagem e que ele só havia comido duas. Abaixou-se em direção ao alforje e pegou o embrulho de papel pardo onde estavam as quatro bananas.

-E que tal se eu lhe der este presente? –indagou o professor.

​O motorista olhou com admiração para as mãos espalmadas de Juan Enrique apresentando-lhe aquela riqueza.

-Minha tia me deu para a viagem –disse Juan –Mas não comi todas.

-Bem –disse o homem –vou arriscar a minha pele por este regalo. Meus filhos vão saborear.

​Assumiu a direção do veículo, fechou a porta e manobrou em direção à rua mal iluminada. Os fachos dos faróis incertos apontavam para as ruas vazias. Em poucos minutos Juan começou a ver as vizinhanças de sua casa. –Como era perto indo de ônibus. Levantou-se e pediu para o motorista parar. A porta foi aberta, o professor pegou seu alforje e suas preciosidades e saltou do veículo aliviado. O motorista nada questionou, não era problema dele o homem viajar com alguma bagagem entre as pernas.

​Aliviado, nesta madrugada de domingo, Juan Enrique caminhou algumas quadras sempre encostado aos muros desbotados e chegou ao portão da sua casa. Passavam das duas horas da manhã, ele estava exausto e ao mesmo tempo muito feliz.

Pegou a chave reserva embaixo do vaso de violetas e abriu a porta. Tudo escuro. Foi tateando com o peso dos víveres até alcançar a escada e subir para seu quarto. Assim que abriu a porta, Maria do Rosário acordou.

-És tu, Juan? –perguntou ela.

-Sim, mi vida, sou eu. Acabo de chegar. Como estão os meninos?

-Dormem. Venha, deite-se também até o dia amanhecer.

-Amanhã passaremos muito bem –declarou ele.

​Juan Enrique estava suado e empoeirado. Não achou justo deitar-se assim ao lado da esposa.

-Vou antes lavar-me um pouco –disse ele. –É bom que relaxa para dormir.

​Depositou o alforje e o fardo no quarto e foi até o banheiro no andar de baixo. Acendeu um candeeiro, iluminou o ambiente outrora vistoso, lembrou-se da sala de banhos da hacienda em Villa Hermosa. Não havia água na torneira, mas um balde com água fresca ao lado da pia. Despiu-se, entrou na banheira esmaltada e passou uma água no corpo. Depois de enxugar-se vestiu o roupão e voltou para o quarto. No dia seguinte haveria muito o quecontar.

​O domingo amanheceu sereno. Maria do Rosário levantou-se antes de Juan Enrique que ressonava suavemente. Deveria estar morto de cansado –pensou ela. Saiu do quarto e não prestou atenção no fardo com os víveres. Foi à casa de banhos. Quando retornou Juan estava na cama com os três filhos. Contava trechos da viagem.

-Já viu a nossa encomenda? –perguntou ele apontando para o canto do quarto.

-Ahn! –surpreendeu-se ela ao notar o fardo muito maior do que o que Honorio havia trazido três semanas antes.

​Juan Enrique levantou-se, vestiu o roupão e pegou o fardo e saiu do quarto em direção à cozinha. Precisava dar satisfação aos outros sobre o sucesso da empreitada. Já estavam todos acordados. Ele colocou o fardo sobre a mesa da cozinha e pediu licença para ir lavar-se.

​Quando voltou, pegou uma faca amolada na gaveta do armário e cortou as cordas de palha de bananeira que amarravam o pacote. Estava tudo perfeito até os ovos. Contou a todos as negociações, disse como havia sido bem tratado, o que conhecera e chamou a atenção de todos, principalmente dos niños e niñas de que aquilo que estavam vendo era um grande segredo. Que não poderiam nunca conversar sobre isto com seus amiguinhos e colegas de escola. Todos disseram compreender. Os víveres foram guardados enquanto os quatro homens planejavam a próxima viagem para dali a três semanas. Calcularam que era um prazo razoável para consumirem tantas coisas boas e além disso não ficarem marcados. Além do que havia o problema de conseguir outro salvo conduto.

​Realmente a chegada dos mantimentos deu um alívio muito grande às famílias. Começaram a passar bem, a ter uma nova disposição apesar da insegurança de serem taxados como contrabandistas ou ilegais, serem até presos e irem parar no paredon como acontecia pelos deslizes mais banais.

​Na terceira semana Juan Enrique chamou Honorio e Epifanio e disse que era a vez de Sebastian ir a Villa Hermosa. Já dispunham dos charutos para trocar com a família de Tio Pedro. Quando Sebastian chegou em casa, os outros três estavam esperando.

-Sebastian –disse Juan Enrique –esta semana você vai a Villa Hermosa, vai na terça feira falar com o soldado, pegar o salvo conduto na quinta, viajar na sexta e voltar no sábado. Já tenho todo o roteiro, não haverá problema. De acordo?

-Claro que sim, professor. Estou às ordens –aquiesceu Sebastian.

-Olhe –disse o professor retirando o salvo conduto de dentro de um livro onde acondicionava os documentos de sua família –o salvo conduto é como este.

​Ao mostrar aos outros, abriu o papel e viu o seu nome bem escrito com uma bela caligrafia. Sebastian olhou, mostrou a Honorio e o passou para Epifanio. Este que trabalhava numa repartição e era mais atento a documentos, chamou a atenção dos outros:

-Vejam, este salvo conduto não tem prazo de validade, pode ser usado a vida toda. Deram sem prestar atenção ao teor do documento, inclusive dá direito a qualquer viagem pelo país!

​Juan Enrique pegou o impresso numa cartolina amarelada com letras pretas e leu com atenção. De fato, o soldado no afã de pegar os charutos, por falta de outro documento, deu aquele mesmo. E ele preenchera com seu nome o que o tornava intransferível.

-E agora? –perguntou Juan a Epifanio.

-Agora nada. Tem um número neste documento. Se o soldado o roubou na repartição, lá vai ter o registro de que alguém está usando. Só que o nome deve ser outro. Só haverá problema para tirar uma segunda via caso este se perca.

-E como faremos para conseguir outro para Sebastian e Epifanio irem a Villa Hermosa? –perguntou Juan.

​Os três se entreolharam e Honorio disse:

-O jeito, professor, é apenas o senhor ir. Todas as vezes. O salvo conduto lhe dá este direito. E o senhor pode ir a outros lugares também: Varadero, Santiago, Cienfuegos, Santa Clara...

​Aquilo era uma novidade apenas, não um fato bom ou ruim. Ficar com aquela responsabilidade somente para si, era um compromisso enorme. Dera sorte da primeira vez, mas teria outra oportunidade? Não saberia a não ser tirando a prova.

​Foi assim que empreendeu a segunda viagem depois das três semanas. Foi tudo repetido, o motorista do ônibus era o mesmo, mudavam os passageiros, o soldado e principalmente o tempo.

​Juan Enrique estava se acostumando com a rotina. De três em três semanas, sempre às sextas-feiras, saía de casa a pé, às vezes arranjava uma carona, chegava na Estação Central, cumprimentava o soldado e viajava até Vila Hermosa. Ficou amigo do motorista Gabriel que lhe deixava perto da garagem de casa quando voltavam. Sempre o gratificou bem, com abóboras, berinjelas, espigas de milho, bananas.

​Seus filhos, assim como os filhos e filhas dos seus vizinhos cresciam e engordavam a olhos vistos. Eram as crianças mais saudáveis da escola, as mais travessas do bairro. E tudo teria continuado assim, se não fosse um acontecimento quatro anos após a primeira viagem. Ele já era considerado um amigo dos sitiantes. O comércio clandestino de charutos florescia o que propiciava trazer mais dois ou três quilos de víveres. E o mais importante, ninguém questionava seu salvo conduto que já estava ficando gasto pelo uso durante todas aquelas viagens a cada três semanas.

​Era o mês de outubro e chovia copiosamente. O ônibus derrapava na estrada lamacenta, mal iluminada pelos faróis que relutavam em romper a cortina de chuva à frente. Os víveres frescos, acondicionados no fardo embaixo do assento, resistiam bem aos solavancos. Tio Pedro estava doente e ele havia prometido que na próxima viagem traria uns medicamentos, alguma coisa que pudesse aliviar as dores nas articulações do velho homem. Estava perdido nestes pensamentos e preocupações quando o ônibus subitamente parou. Entrava água pelas janelas que não se fechavam há muito. Juan Enrique estava encharcado de água de chuva e sentia algum frio.

​A porta se abriu e entraram seis soldados no ônibus.

-Ah! Como chove –reclamou o primeiro deles.

​Encaminharam-se para os fundos do veículo. Cinco sentaram-se atrás e o que parecia ser mais graduado, por trás da lanterna cromada, sentou-se no banco do outro lado do professor, na mesma fileira.

-E entonces hombre? –disse ele enquanto tirava o quepe da cabeça molhada.

-Tudo bem, até agora –respondeu amavelmente o professor.

-Adelante! –ordenou ao motorista.

​Gabriel acelerou e o veículo foi aos poucos ganhando velocidade mínima. Derrapava, entrava e saía das enormes poças de água, sacolejava e seguia adiante aos trancos e barrancos.

-Como estás? –perguntou o vizinho de banco.

-Bem, embora muito molhado. –respondeu Juan Enrique.

-E como está sua família?

​Com esta pergunta acendeu-se a luz amarela na cabeça do professor. –Que pergunta esquisita! –pensou ele. Mas respondeu:

-Está bem. Os niños crescem e nos envelhecem.

-Claro! E crescem muito quando estão bem alimentados! –disse o fardado.

​Aí acendeu a luz vermelha! –O que será que este camarada sabe de meus filhos, de minha família e de serem meus filhos bem alimentados? –imaginou o professor.

-Sim, são crianças sadias –respondeu cauteloso.

-Señor, há bastante tempo sigo os seus passos. Pessoalmente. O número do salvo conduto, 0545, na repartição está em nome de outra pessoa. Mas não tem o que temer. –disse o soldado.

​O professor suava apesar do frio, estava em pânico, sem poder imaginar as consequências de seu ato.

-Tudo que queremos saber é como funciona. Porque lhe fornecem estes víveres que estão aí embaixo do banco? Por amizade?

-Sim, por parentesco –argumentou o professor enquanto o ônibus serpenteava na lama –um dos meus vizinhos é de Vila Hermosa, Honorio, e os tios dele mandam estas coisitas para as crianças.

-É uma boa causa, reconheço –disse o soldado. –Sou tenente da Guarda Nacional Revolucionária. Chamo-me Porfirio Gonzalves. Estes são meus ajudantes de ordem, pessoais. Preciso que me responda, professor Juan Enrique Barral Vilan, porque o próprio Honorio não vai visitar os tios?

​O professor estava estarrecido. O tenente sabia de tudo. E como o tenente, outros deveriam saber. Então era melhor colaborar.

-Porque o salvo conduto é no meu nome, é pessoal e não há como conseguir outro.

-Pelo menos o señor não mente. Há uns dois meses mandamos o soldado que lhe forneceu o salvo conduto para a prisão corretiva –esclareceu o tenente.

​-A coisa está ficando cada vez pior, o nó está apertando –pensou Juan.

-Señor tenente, tudo que queremos é criar as crianças fortes e sadias para o futuro de nuestra nacion! -declarou sem convicção.

-Buenas, é uma boa tentativa. Professor –adiantou o tenente –como o señor conseguiu com o motorista Gabriel até uma carona para perto de casa, estou certo que conseguirá outras coisas. Mas me responda, os campesinos lhe fornecem víveres de graça? Sem qualquer recompensa?

​Juan Enrique estava começando a entender o xis da questão. O que seria proibido não era conduzir víveres, mesmo que clandestinamente, era o comércio que geraria dinheiro e riqueza, algo abominável para o regime socialista. Precisava não implicar a família de Honorio. Tio Pedro, tio Carlos, Ramon, todas excelentes pessoas.

-Eles dividem o que produzem com os sobrinhos. Nada mais do que isto. E a vantagem é não ter custo, a não ser ir buscar –assegurou o professor.

​Enquanto se aproximava dos limites de La Habana, muito depois da meia noite, a chuva felizmente amainava. Mas era uma noite tremendamente escura, ideal para um assassinato. Não havia ninguém nas ruas, as casas apagadas pelo racionamento de energia elétrica, o povo amedrontado dentro das casas. Gabriel conduziu o veículo até a estação. Os outros poucos passageiros desceram cabisbaixos. Não seriam testemunhas de nada, nem diálogos, nem acontecidos, nem da chuva. Juan Enrique tremia de frio e de pavor. Estava literalmente em pânico.

​Após uns poucos minutos o tenente Porfirio se levantou. Ordenou que os demais descessem do ônibus, assim como Gabriel. Voltou a sentar-se bem perto de Juan Enrique, limpou a garganta e disse em voz baixa, quase inaudível:

-Professor, se eu tivesse filhos e dependesse da libreta, se eu tivesse uma chance de proporcionar mais alguma coisa aos meus filhos, eu faria exatamente o que o señor está fazendo. Mire, vou mandar Gabriel lhe levar como das outras vezes. Fico no Quartel General de La Moncada. Se quiser me procure, não vou mais importuná-lo. Buenasnoches, adios.

-Tenente –arriscou o professor –se eu decidir deixar o País...o señor me ajudaria?

-Há uma fórmula pouco divulgada. Quase todos nós temos ascendentes espanhóis. Consiga na embaixada da Espanha um passaporte espanhol para si e para sua família e o deixaremos partir. Se resolver, me procure. E não passe esta informação a ninguém, compreendes?

-Sim, claro. Muchas gracias, Adios.

​O tenente Porfirio se levantou e saiu do ônibus embaixo de um resto de chuva. Gabriel entrou, assumiu o volante e disse virando-se para trás:

-Vamos. O diabo às vezes não é tão preto quanto se pinta. –e deu partida no motor.

​Juan Enrique estava molhado de corpo e alma. Chegou em casa amanhecendo o dia de domingo. Pegou a chave sob o vaso de violetas, entrou em casa e foi direto para a cozinha. Reacendeu o fogareiro a carvão e botou uma chaleira de água para esquentar. Precisava de um banho quente, um café e se achasse, uma boa dose de rum. Foi ao andar de cima e entrou no quarto. Pegou uma muda de roupa seca no baú e voltou para a cozinha.

​Tratou de coar um café. Pegou a chaleira e um balde de água e foi para a casa de banhos. Partes da conversa com o tenente faiscavam em sua mente. Será que ele estivera sonhando? Ou delirando de febre por causa da frieza e das roupas molhadas? No reservado da sala de banhos despiu-se, misturou a água e banhou-se. Foi um alívio sentir o calor da água morna invadir seu corpo resfriado e aliviar seus ossos. Depois de enxuto, vestiu a roupa seca, ajeitou como pode o quarto de banhos e voltou para a cozinha.

​Maria do Rosário havia sentido a sua presença no quarto e acordado. O café já estava servido numa generosa xícara de louça alva, dos tempos da mãe de Juan Enrique.

-Querida –começou ele –somos descendentes de espanhóis? Sabes alguma coisa sobre isto?

-Que pergunta estranha a esta hora da manhã! –exclamou a mulher. –Apenas mamazita poderá lhe responder. Mas sumadre com certeza é espanhola!

-Ora –replicou Juan Enrique –Isto eu sei. Mas preciso saber de seu lado!

-O que está acontecendo, Juan. Porque este súbito interesse na nossa ascendência? –perguntou Maria do Rosário.

​O professor tratou de contar o encontro com o tenente no ônibus, entre um gole e outro de café. Devido à imensa carga de adrenalina, havia perdido o sono por completo. O tempo estava escuro, cinza. Em breve os outros acordariam. Que contaria ele?

-Nada –aconselhou a esposa –este será um assunto só nosso. Trataremos disso sozinhos, não podemos decepcionar nossos amigos.

​Maria do Rosário abriu o fardo que estava molhado, encharcado de água de chuva. Separou os mantimentos e Juan Enrique perdia-se em alocubrações.Precisaria ir a Santiago avisar à Miralda, sua mãe, porque a levaria com eles. E também precisaria urgentemente procurar a embaixada espanhola. Faria isto na segunda feira.

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​Durante a narrativa, assim tão repleta de detalhes, o Baiano teve certeza de que o professor havia conseguido sair incólume de Havana. Afinal ali estavam os filhos e a esposa:

-Professor –indagou ele –foi difícil conseguir os passaportes?

-Sabes, meu amigo, quando a sorte resolve lhe acompanhar não há porque a temer. E ela estava decididamente do meu lado, então não havia motivo para não acreditar e não seguir com o destino.

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​Na segunda feira depois da aula ele tratou de descobrir como ir até Santiago visitar a sua mãe. O salvo conduto, como lhe garantira o tenente Porfírio, tinha sido um bilhete premiado. Ele não teve dificuldade para conseguir deslocar-se até a cidade de sua mãe. Foi depois da aula da sexta feira e retornou na manhã de domingo trazendo dona Miralda com ele.

​Em Havana procurou a embaixada espanhola em companhia da família. Apresentou as certidões de nascimento e sem muita burocracia conseguiu os passaportes para Miralda, para ele e para os três filhos, que foram todos fotografados e identificados inclusive com as suas digitais. Mas o de Maria do Rosário não poderia ser concedido através da certidão de nascimento. Precisaria que ela tivesse um ascendente espanhol comprovado.

​Depois de indagar mamazita, perdida em sonhos e a caminho de uma senilidade irreversível, resolveu procurar o tenente Porfirio Gonzalves. O tempo passava e ele via aproximar-se o prazo de ter que voltar a Vila Hermosa. E ele não gostaria mais de fazer a viagem, o risco já tinha ultrapassado os limites da segurança dele e de sua família.

​Na terça feira partiu em busca do tenente no Quartel de La Moncada. Sentia um medo incontrolável de entrar no âmago mais perverso da Revolucion. No lugar onde ficava o paredon. Mas era por uma boa causa. Na guarita à entrada da fortaleza, perguntou ao soldado que estava de guarda pelo tenente Porfirio Gonzalves. O soldado ordenou que ele entrasse e fosse até a barreira interna. Passou por dentro de um túnel escuro, abobadado, feito de pedras, e chegou a um pátio fechado por uma barricada com inúmeros soldados. Estes eram pessoas mais gabaritadas provavelmente escolhidas a dedo por El Comandante. Tirou o chapéu de palha e perguntou pelo tenente Porfirio. Um militar que parecia ser o chefe da guarda veio atendê-lo.

-Quem quer saber?

-Juan Enrique Barral Vilan.

-E o señor tem algum negócio com o tenente Gonzalves?

-Não señor, não tenho negócios com ele. Apenas o conheci pessoalmente e ele me disse que poderia me ajudar, caso eu necessitasse.

-Humm...-manifestou-se o militar pensando numa resposta e nas suas consequências –espere aqui. –ordenou.

​Deu meia volta e se encaminhou para o fundo do pátio. Enquanto ficou ali, em pé, teve todos os pensamentos ruins que sua cabeça poderia criar. Quinze minutos depois o militar voltou com outro fardado. Vinham caminhando de longe, lentamente, conversando. Quando se aproximaram, Juan Enrique percebeu que era o tenente Porfirio em carne e osso.

-Boa tarde, señor –disse o tenente. –Eu o conheço?

​Juan Enrique ficou arrasado com a pergunta.

-Señor tenente, faz quase três semanas que nos encontramos num transporte de Vila Hermosa. Recorda?

​O tenente franziu o cenho, retirou o quepe, olhou de novo para Juan Enrique e abriu um largo sorriso:

-Como não! Claro que lembro embora a noite estivesse chuvosa e escura. Então, resolveu me procurar?

-Sim. Apreciaria muito ter uma conversa em particular com o señor.

-Claro que sim. Vamos lá para fora. Siga-me.

​E foi saindo pelo túnel seguido de Juan Enrique,depois de se despedir dos outros soldados e do chefe da guarda. Já do lado de fora, do outro lado da rua, encostado numa amurada a beira mar, ele disse:

-Em que posso lhe ser útil deste lado do quartel?

-Segui o conselho do señor. Já estou com os passaportes espanhóis. E agora como procedo?

-Tem que reservar as passagens de navio zarpando de Mariel e partir. Simples assim.

-Mas tenho um problema. –confidenciou Juan Enrique.

-De que tipo?

-A madresita de minha mulher está mal do juízo e não sabe nada dos nomes de família para a embaixada espanhola providenciar o documento para ela.

-Queres um conselho?

-Claro. –disse Juan Enrique –Vim procurar o señor porque preciso não apenas de ajuda como de conselho.

-Vá embora com seus filhos e sua mãe. Quando estiver na Europa usted vai à embaixada cubana e requer a ida de sua esposa.

​Juan Enrique estava pasmo. Deveria ter ficado pálido ante a recomendação do tenente. –E agora? –pensou ele.

-Não há outra maneira?

-Não. E é aconselhável que partas logo, pois em breve as disposições para estrangeiros irem embora podem ser revogadas. –disse ameaçadoramente o tenente Porfirio.

-Está bem, não vou insistir. Muito grato por sua disposição em me ajudar.

​Juan Enrique apertou a mão do tenente e foi embora, decepcionado, vencido pelo sistema. Ele nada era sem Maria do Rosário, como deixá-la? Resolveu voltar à embaixada espanhola.

​No dia seguinte cedo estava em frente ao portão do prédio que abrigava a chancelaria da Espanha. Assim que os portões abriram ele se dirigiu a um sentinela e apresentou o passaporte. Deixaram-no entrar. No escritório, o mesmo onde haviam concedido os documentos, indagou quem seria o funcionário mais graduado entre aqueles que ali estavam. Um senhor baixinho e careca que estava de costas no fundo da sala, virou-se e caminhou até o balcão.

-Em que posso lhe ajudar, meu amigo? –indagou o homemmais bem vestido que Juan Enrique se lembrava de ter visto. Terno de linho, colete com uma corrente de ouro, gravata de seda, um lord.

-Bem, señor, estive aqui há uns dias e tirei passaportes para minha mãe e meus três filhos. Estou liberado para sair do País, mas não consegui um passaporte para minha mulher.

-E porque não?

-Não encontramos os documentos que possam provar que ela tem ascendência espanhola.

-Mas ela não é a sua esposa?

-Sim, é.

-Casaram-se na igreja e no juiz, ou vivem em concubinato?

-Não senhor, casamos na igreja e no juiz.

-E tem a certidão de casamento?

-Certamente que tenho.

-Então traga para mim que concederei o passaporte. Mas ande logo, o governo da revolução ameaça a toda hora suspender as concessões para os estrangeiros deixarem a ilha.

​Juan Enrique estava exultante.

-E quem é o senhor? –quis saber ele.

-Sou o embaixador, a autoridade máxima aqui neste prédio.

-E quando eu retornar com a certidão, a quem devo procurar?

​O embaixador olhou em volta e chamou uma jovem senhorita.

-Esta é Letízia Spindola. Ela vai cuidar pessoalmente de seu problema.

​Juan Enrique estava aliviado. A solução para sua partida estava definida. Caminhando a passos largos atravessou a cidade rumo ao que entendia ser seu futuro. Em sua casa, agora coletiva, subiu para seu quarto para contar a novidade a Maria do Rosário.

​O problema maior surgiu no dia seguinte. Preocupado que estava em conseguir os documentos, sequer foi à Universidade dar as aulas. Isto era considerado uma falta gravíssima. Assim que entrou na sala de aulas e começou a escrever na lousa as primeiras fórmulas matemáticas da matéria, foi interrompido pelo diretor da Escola e um soldado fardado.

-Professor –disse o diretor. –Há uma razão para o senhor ter faltado ontem?

​Juan Enrique não gostava de mentiras. Era sempre autêntico e isto o favorecia. Resolveu dizer a verdade.

-Senhor Diretor, estive ontem na Embaixada Espanhola providenciando o passaporte a que tenho direito pela Lei. Em breve vamos visitar nossa família na Espanha.

-Quer dizer que vai abandonar seus alunos? –inquiriu o militar.

-Não señor, de forma alguma. Iremos durante o recesso.

-Está bem –disse o diretor –então vamos aguardar para ver qual será o real comportamento do señor.

​Juan Enrique não estava mais aguentando a viver sob tal pressão. A toda hora imaginava ser preso arbitrariamente como faziam com os dissidentes. Terminou sua aula e foi para casa almoçar. Um pouco antes de terminar a siesta, pegou na gaveta da na cômoda de seu quarto a certidão de casamento e foi com Maria do Rosário para a Embaixada. Havia uma imensa turba do lado de fora dos portões, pois o boato de que a Lei seria revogada em breve, fez com que centenas de cubanos acorressem à embaixada. Ele foi passando pela multidão pedindo licença e arrastando a mulher com ele. Finalmente chegou ao portão onde vários soldados procuravam colocar ordem numa fila. Ele se dirigiu a um deles:

-Por favor, procuro a senhorita Letizia Spindola.

​O soldado estava do lado de fora da grade de modo que deu a ele uma resposta evasiva. Não havia como chegar perto da grade e inquirir alguém de dentro do prédio. Juan Enrique estava para se desesperar. Olhava de um lado para o outro e nada, ninguém conhecido. Fazer o que?

​Resolveu pedir ajuda ao soldado.

-Señor, tenho uma entrevista agendada a mando do embaixador. Necessito chegar até o portão.

-Vou lhe deixar passar, mas tenha um pouco de paciência, está muito tumultuado.

​Dentro de instantes o soldado olhou para Juan Enrique e disse:

-Passe agora. –e levantou o braço que preso ao do colega ao lado fazia uma corrente humana.

​Juan Enrique puxou Maria do Rosario e abaixando-se passaram sob a corrente de braços. Espremidos contra a grade, não teria jeito de chegar até o portão. Foi quando ele viu pela parte de dentro em meio aos jardins a própria Letizia.

-Señorita! –gritou Juan Enrique. –Señorita LetiziaSpindola!

​Mesmo com o barulho das vozes e em meio à algazarra dos que estavam contidos pela barreira de soldados, ela virou o rosto e reconheceu o professor. Veio até ele e de dentro da grade falou:

-Veja se faz um jeito de ir até o portão! O Embaixador mandou que atendesse o señor assim que chegasse.

​Juan então pediu licença ao mesmo soldado e passou de volta sob a corrente de braços para o meio da turba. Foi aos poucos se deslocando em direção ao portão, com muita dificuldade. Conseguiu alcançar a linha da entrada, mas de novo a corrente humana formada pelos guardas impediu que ele e Maria do Rosario alcançassem o acesso. Foi quando ouviu Letizia dar ordem a um militar superior de dentro da Embaixada. O homem abriu o portão com quatro guardas da própria embaixada e conseguiram trazer Juan Enrique e Maria do Rosario para dentro das grades.

​Foi tremendamente desgastante, mas o sacrifício valeu a pena. Letizia tomou a frente de tudo, mandou fotografar o rosto de Maria do Rosario, preencheu sua ficha, copiou a certidão de casamento numa máquina de fac símile e emitiu o passaporte. Quando saíram do escritório já era início de noite e o toque de recolher fez com que todos tivessem ido para as suas casas. Eles caminharam por mais de uma hora até o aconchego do lar. No caminho fizeram os planos de partida e desmobilização da família. O pior, no que ambos concordavam, era abandonar os vizinhos que se tornaram amigos, sem nada dizer. E ele não teria como esperar o recesso da Universidade. Teriam que ir o quanto antes para Mariel.

​De La Habana até a cidade portuária eram aproximadamente 40 quilômetros. Como ir até lá? Juan Enrique então teve uma ideia, que se não resultasse positiva, tinha ao menos sido brilhante. Neste fim de tarde foi escondido até a Estação Central. Entrou discretamente e viu quem procurava: Gabriel, seu amigo motorista. Ele estava numa bodega próxima ao ônibus, do outro lado do largo do estacionamento, tomando um café.

-Buenas noches –cumprimentou o professor

-Olá, meu amigo, como está? –respondeu o chofer.

-Bem, mas estou precisando ter uma conversa com você.

-Está indo a Vila Hermosa?

-Não é sobre isto. É apenas um conselho.

​Gabriel ficou intrigado. Como é que ele um simples motorista de marionete poderia aconselhar a um professor de universidade? Curioso, levantou-se da velha cadeira de palhinha e caminhou para fora da bodeguita.

-E então, professor. Como posso aconselhá-lo? –indagou Gabriel sorrindo sob o bigodão.

-Sabe, Gabriel, estes anos todos que tenho viajado em sua companhia todos os meses, e sua carona ao fim das viagens, nos ligaram. Agora quero lhe propor uma troca.

-Troca? Um escambo? Eu nada possuo que possa lhe interessar.

-Possui, sim. É que às vezes as pessoas não percebem a capacidade que tem.

-Estou confuso e se a explicação for longa vou perder meu horário. O señor sabe que eu não falho!

-Claro que sei! Olhe, vou embora de Cuba. E preciso lhe oferecer a oportunidade de continuar fazendo o que eu fazia. Pode ser bom para sua família, para seus filhos.

​Então Juan Enrique contou tudo da família de Honorio em Vila Hermosa. E sugeriu que Gabriel continuasse a fazer a troca dos charutos pelos mantimentos.

​Ele pensou, pensou, a toda hora olhava em direção ao ônibus para ver quanto poderia prolongar a conversa.

-Mas preciso de uma gentileza sua, Gabriel –disse o professor.

-Claro, o que precisar.

-Quero que me leve e a minha família a Mariel –sussurrouJuan Enrique.

​Gabriel lentamente tirou o chapéu, cofiou o bigode, imaginando as consequências de um ato de rebeldia: o paredon!

Ele usava sempre uma camiseta branca de algodão e limpeza duvidosa por dentro de calças largas de sarja e sobre a camiseta uma camisa grande, enorme para o tamanho dele, “o defunto era maior”, dizia ele rindo, perdido em seus pensamentos.

-Professor, hoje nada vamos resolver. Vou viajar agora, na volta procuro o señor para marcarmos o dia.

-Mas tem que ser logo. Já me informei e o próximo barco sai daqui a cinco dias. Devo chegar à Mariel daqui a no máximo, três dias.

-Está bem. Amanhã cedo vamos conversar.

-Onde?

-Em sua casa.

-Não pode ser. Não quero que meus vizinhos tomem conhecimento de que vamos embora, antes da hora. Só vou lhes dizer minutos antes da partida.

-Então vá amanhã cedo à oficina. Chegue por volta de cinco da manhã.

-Combinado, boa viagem, cuide-se –recomendou Juan Enrique.

​No dia seguinte o professor saiu cedo de casa, assim que o sol nasceu. Caminhou beirando as casas em meio ao resto de sombra que as construções projetavam. E ainda precisava ir à Universidade. Era sexta feira e sábado seria um ótimo dia para partirem. Não demorou, chegou à garagem de Gabriel. O ônibus estava estacionado atrás do portão de madeira. Bateu palmas. Logo Gabriel apareceu.

-Buenos dias –cumprimentaram-se.

-Professor, tenho boas notícias. Vamos hoje.

-Hoje! Ainda preciso ir à Universidade.

-Sim, o señor vai. Partimos à noite.

-Ah! Bem. E o toque de recolher?

-Temos que arriscar nas barreiras. Vou pedir a um guarda que é sobrinho de um compadre meu para nos acompanhar. Daremos um jeito e o señor tem aquele salvo conduto para alguma emergência.

-A que horas? E de onde saímos?

-Aconselho que o señor leve o mínimo de coisas possível.Saímos às dez da noite. No máximo uma hora de viagem. Onde pernoitarão em Mariel?

​Outro problema a ser resolvido. Ele, a mulher, a mãe e os três filhos, meia noite numa cidade portuária. E sozinhos.

-Vamos pensar no caso. Tudo ficará bem –disse o professor –até a noite, meu amigo.

​A manhã na Universidade foi tranquila. Deu as suas quatro aulas sem nada deixar transparecer. O dia seguinte, sábado, embora fosse dia de aula, neste sábado estariam de folga. Era 26 de julho e se comemorava uma data importante para a Revolução. Ele sequer sabia se isto seria um agravante ou um atenuante para sua viagem de partida.

​O impressionante nestes regimes de exceção como o vigente na ilha, era o modo como as notícias se espalhavam. A chamada raia miúda possuía um meio de se comunicar boca a boca, de se ajudar, de passar as notícias mais importantes. Por exemplo, a partida do navio Maestrade Mariel para o Panamá na quarta feira, ele ficara sabendo por meio destes informes orais. Tudo se sabia, quem havia morrido, quem fora condenado, quem estava roubando e quem traía a mulher ou a revolução.

*************

​O Baiano estava impressionado com a descrição do professor. Como se poderia viver num lugar privado de liberdade para ir e vir, onde tudo, tudo mesmo, até conseguir gêneros alimentícios básicos, poderia ser uma grande dificuldade? O governo ditatorial engessa todas as atividades humanas, mete-se em tudo, em todas as relações, para dominar as vontades e os desejos pessoais mais elementares e assim se perpetuar no poder.

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​Depois da última aula da manhã, foi célere para casa. Almoçaram e antes da siesta Juan Enrique chamou os vizinhos. Estava triste, acabrunhado, sem imaginar a reação que cada qual pudesse ter.

-Meus amigos –disse, dirigindo-se aos outros três, longe dos olhares e ouvidos das mulheres e crianças. –Conto com a sua discrição.

-O que se passa? –indagou Honório.

-É que vamos partir hoje. –ele omitiu o horário de propósito.

-Nós já sabíamos que estavam planejando –respondeuSebastian.

-Como sabiam? –perguntou alarmado o professor.

-Em La Habana, tudo se sabe –disse Epifanio.

-Bem, tive o cuidado de lhes deixar um sucessor.

-Vem alguém do señor morar aqui, ocupar o seu lugar?

-Não, não. –respondeu Juan Enrique –Deixei uma pessoa encarregada de fazer a troca de charutos em Vila Hermosa.

​E contou todo o arranjo que acertara com Gabriel. Sendo que de agora em diante ninguém precisaria ir, nem pegar ônibus. Gabriel passaria para pegar os charutos de três em três semanas e traria os víveres como sempre acontecera e ficaria com a parte dele, Juan Enrique.

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-Nem precisa dizer que todos acharam uma ótima saída –disse o professor.

-É, mas ninguém sabe quanto tempo durou a relação –completou Maria do Rosario

-Vocês não tem notícias de quem ficou para trás? Dos vizinhos da Coletiva? De Mamazita? –perguntou o Baiano.

-Durante algum tempo não havia notícia alguma. Estávamos a deriva entre o Panamá, a Espanha e a Flórida.Depois que nos estabelecemos por aqui, que usei minha graduação americana para reconquistar um lugar de professor na Universidade da Florida, passamos a melhorar de vida. Os passaportes espanhóis também ajudaram muito. Depois de inseridos na sociedade local, cubano-americana, passamos a fazer parte da rede externa de informações. Gabriel continuou durante muitos anos fazendo o percurso e levando víveres para nossos vizinhos. Pelo menos até ontem ainda estavam vivos. Mamazita faleceu pouco depois de termos partido, a casa deve estar completamente deteriorada. E os tio de Honorioainda detém a posse da terra. Apenas Raulino foi preso quando levava um carregamento de charutos para ser embarcado na praia. Apanhou muito para contar como conseguia tantos charutos, mas não falou. Finalmente o soltaram. Mas deixe que eu termine a história.

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​Gabriel foi pontual no horário. Despediram-se dos vizinhos silenciosamente e os seis embarcaram no ônibus. Talvez por ser véspera da data magna da revolução e uma noite de sexta feira, as barreiras estavam vazias. Em pouco menos de uma hora chegaram a Mariel. Gabriel procurou uma casa que lhe parecesse de família nas cercanias do porto e parou o ônibus. O guarda desceu primeiro e se certificou de que a rua fosse segura. Então mandou os outros desembarcarem. Miralda, os meninos, Maria do Rosário e o professor. Depois que estavam seguros na calçada mal iluminada em frente a uma pequena residência, Gabriel desceu. Cumprimentou a cada um desejando-lhe sorte. Aproximou-se de Juan Enrique, os olhos marejados de lágrimas. O professor então, levantoua manga esquerda da guabera e desafivelou o relógio Classic que o acompanhava há muito tempo. Entregou-o a Gabriel dizendo:

-Na primeira vez que for a Vila Hermosa fazer o escambo, entregue este relógio a Ramon em meu nome. Será seu passaporte para conseguir tudo que quiser.

​Acabaram se despedindo. O ônibus barulhento afastou-se lentamente. A última vez que Juan Enrique olhou o velho Classic antes de entregá-lo a Gabriel eram cinco para meia noite.

​Olharam em volta perdidos. A casinha com um resto de tinta azul na parede, uma platibanda baixa, duas janelas e uma porta, parecia abandonada. Juan Enrique bateu na porta com o nó do dedo indicador direito. Bateu uma, duas, três vezes e ninguém abriu. O professou então resolveu caminhar em direção a um poste com uma solitária lâmpada acesa. Não fazia medo porque era completamente deserto, nem um automóvel ou um caminhão, nada. Depois do poste Maria do Rosarioapontou uma casa maior adiante.

-Há uma claridade saindo pelas gretas daquelas portas.

​Foram até lá silenciosamente. Era uma construção maior, de um andar só e três portas duplas, altas. Poderia ser um armazém. O professor bateu na porta do meio. Na segunda batida, ouviram passos dentro da casa. Eram chinelas sendo arrastadas no piso de cimento. Uma voz de homem perguntou:

-Quem está aí?

-É de paz –respondeu Maria do Rosário.

​A porta então se abriu. Primeiro uma greta, depois a metade. O homem olhou para fora, avaliou os visitantes e como havia três crianças e uma velha, ele mandou entrar. Depois de todos dentro do ambiente claro, o homem fechou a porta e passou uma tranca de ferro atravessada. Era um armazém bem sortido. Como era possível? –pensou Juan Enrique olhando as prateleiras cheias de gêneros alimentícios, pacotes diversos, linguiças penduradas num varal de arame e luzes pendendo do forro de madeira.

-Entrem, entrem –disse o homem. –Em que posso lhes ajudar?

-Viemos hoje de La Habana para pegarmos o navioMaestra que sai quarta feira para o Panamá.

-Tem documentos? –perguntou

-Sim,-respondeu o professor –Gostaria de vê-los?

-Claro, preciso ter segurança.

​Juan Enrique pegou num alforje de couro os seis passaportes espanhóis, novinhos. O homem os pegou, abriu cada um e disse:

-Como esperam embarcar sem vistos?

-Vistos? –inquiriu Juan Enrique

-Sim, vistos. Não basta ter o passaporte, necessitam vistos.

​O desânimo tomou conta do professor e de sua mulher. Os meninos e dona Miralda nem estavam se importando com a conversa.

-E onde se consegue os vistos?

-Na aduana. Ustedes tem as passagens?

-Não ainda. Estamos aqui com antecedência para conseguir.

-Humm, humm. Estão em grande dificuldade. Venham, tenho um cômodo onde poderão passar a noite. Amanhã verei o que posso fazer, professor Juan Enrique.

-E como se chama o señor?

-Raul. Raul Diáz. Amanhã lhes digo o que sou e como poderei lhes ajudar. Mas pelo menos uma coisa é certa. Visto que saltaram do transporte aqui aleatoriamente e aleatoriamente bateram à minha porta, é porque são pessoas de muita sorte, abençoadas por Deus e por Nossa Senhora de Guadalupe. Só estou hoje aqui porque amanhã é feriado. Se não, estaria trabalhando.

​O homem acomodou a família num cômodo atrás do armazém. Não era propriamente um quarto, mas como havia muita sacaria de grãos e farinhas, acomodaram-se e trataram de tentar conciliar o sono. As crianças dormiram imediatamente, assim como Miralda. O casal mal conseguiu cochilar. O calor era quase insuportável, apesar de ser inverno.

​Após a provação da noite, chegou a madrugada mais fresca e por fim a luz do dia se mostrou por algumas telhas de vidro que iluminavam o cômodo. Juan Enrique olhou tudo em volta sem acreditar no que via. Mais gêneros alimentícios, mais pacotes de enlatados e biscoitos. Na parede ao lado da porta, reconheceu um impresso colorido onde estava uma bandeira com quatro quadros retangulares, azuis, brancos e vermelhos com estrelas vermelha e azul. Era a bandeira do panamá. Raul Diázdeveria ser panamenho. Juan Enrique saiu do cômodo. No salão do armazém, mais claro com a luz do dia, havia balcões, tamboretes e a impressionante quantidade de gêneros alimentícios. Precisava de um banheiro, mas não deveria sair bisbilhotando o resto da casa, afinal tudo indicava que o comerciante morava ali.

​Sentou-se num daqueles bancos baixos de madeira tosca e esperou. Estava perdido em seus pensamentos e sua insegurança quando a porta do meio se abriu e entrou o senhor Raul.

-Bom dia, professor! Acordou cedo!

-Bom dia, señor Raul. Gostaria mais uma vez de agradecer a acolhida.

-Já vamos conversar. Espere um pouco.

​Raul foi até um corredor largo para ondedava o cômodo onde eles haviam pernoitado e abriu uma porta para o fundo, uma espécie de quintal.

-Professor, se precisar de um quarto de banhos, fica logo ali –disse apontando uma outra construção contígua à principal.

​Juan Enrique se levantou, passou no cômodo onde dormira, pegou seu alforje e foi se ajeitar no quarto de banhos. Rosário e Miralda estavam acordadas e conversavam em voz baixa, as crianças ainda dormiam.

​Quando voltou ao salão do armazém, Juan Enrique pode observar melhor Raul Diáz. Alto, gordo, bigode largo, suspensório segurando sua imensa calça azul e um relógio de pulso que lhe chamou a atenção por ser algo que poucos possuíam.

-E então, señor Raul, como vou fazer para sair de Cuba? Estou numa encrenca?

​Raul Diáz sorriu levemente.

-Professor, vou esclarecer ao senhor o que se passa. E lhe dizer que o senhor e sua família são pessoas abençoadas pela virgem de Guadalupe. Vieram aqui ao acaso, só isto já seria digno de nota. Mas eu estar aqui...Muita sorte!

​Então Raul Diáz contou que era despachante aduaneiro, que devido à revolução fora obrigado a se tornar um entreposto comercial. Tudo aquilo que Juan Enrique via nas prateleiras era para abastecer os navios. Não se podia vender nada ao público, mesmo porque o povo não dispunha de dinheiro para tanto. Disse também que em vez dele sair de Cuba no Maestra, um navio de bandeira panamenha indo para o Panamá, que ele já arrumara umas passagens sem qualquer custo e sem necessidade de visto, numa traineira para o pequeno porto de Playa Del Carmen, no México. Afianal, a distância de Mariel daquele pequeno porto era de apenas trezentas milhas, umas quinze a dezoito horas de viagem.

​Juan Enrique aceitou imediatamente. Estava pasmo com sua sorte, com a proteção divina. Devido a ser verão, certamente não haveria maiores problemas na travessia. Foi até o cômodo e mandou que Rosário e Miralda se aprontassem e acordassem os niños.

​Quando a família chegou no salão do armazém, Raul pegou uns pacotes de biscoitos, abriu e colocou o conteúdo num prato de porcelana. Ao lado colocou uma moringa com água fresca e alguns copos de vidro grosso.

-Desculpem, mas é o que tenho a oferecer no momento.

-Não se incomode –disse Maria do Rosário –Tudo está muito bem.

​Depois de alimentados, Raul disse que a traineira sairia logo, que deveriam acompanhá-lo ao cais, do outro lado da rua. Também os instruiu a não olhar para os lados, sairiam em fila indiana, ele, Raul na frente, depois as crianças, as senhoras e o professor no fim. Informou que haveria um portão a atravessar e que neste portão haveria soldados, que um dos soldados pediria os documentos. Disse que apresentasse os passaportes normalmente e então tudo estaria em ordem.

​Assim foi feito. A luz brilhante do sol resplandecia imponente, refletida como um rastilho de prata no Mar do Caribe, além do cais. Era uma avenida larga, de paralelepípedos, por onde transitavam alguns caminhões para serem carregados e outros que seriam descarregados pelos guindastes.

​Raul saiu priemeiro, depois os outros. Fechou a porta do armazém a chave. Tomou a dianteira e atravessou a rua larga. Do outro lado, um muro com grade de ferro que isolava o cais da calçada. Caminharam naturalmente, olhando para baixo. Adiante, uma barricada na entrada do porto. O encarregado da fiscalização já conhecia Raul que, com certeza já o haviaprevenido, tal a celeridade com que tudo aconteceu, sem perguntas e sem objeções. Pouco a pouco foram passando e entrando na grande área do cais. Depois que todos tiveram os passaportes examinados e carimbados -SALIDA- Raul os encaminhou em meio ao movimento do porto até uma embarcação atracada a alguma distância.

​Era um barco pequeno, se comparado aos demais navios que estavam sendo abastecidos no grande porto de Mariel. Todo branco, com detalhes em azul e amarelo, possuía uma cabine acima do convés. No costado da proa estava escrito JAMAR em letras amarelas. Uma prancha, que Juan Enrique depois passou a chamar “prancha de salvação”, ligava o cais ao convés. O capitã estava ao pé da prancha esperando seus passageiros.

-Señor Raul –começou a dizer Juan Enrique –parece que tudo já estava preparado para a nossa partida!

-Professor, ontem depois que chegaram, saí para a rua. Mesmo sendo tão tarde, fui a uma bodega onde se encontram os marinheiros e capitães. Lá fiz meus contactos e descobri esta traineira indo para Paya Del Carmen. Não titubeei. Peguei logo a oportunidade que se não a abraçamos logo, pode em instantes se perder.

-Muito lhe agradeço, quem sabe um dia não lhe retribuo. Jamais vou esquecer estas circunstâncias –balbuciouemocionado o professor enquanto abraçava timidamente seu benfeitor.

​O capitão do barco era um homem de meia idade, vestido ao modo dos marujos do Caribe. Calça azul, camisa branca, quepe de capitão azul marinho. Chamava-se Rafael Ignácio Gomez e se apresentou dando as boas vindas à família. –Quanto teria custado isto? –pensou Juan Enrique. –E como retribuir, pagar ou recompensar o Raul Diáz?

​O capitão Rafael mandou um marujo jovem e simpático acomodar os passageiros no camarote. E que permanecessem lá para não chamar a atenção, -nunca se sabe dos humores desta gente –sussurrou Rafael.

​O barco não demorou a sair. Na popa tremulava uma bandeira mexicana. Pela escotilha Juan Enrique procurava gravar na mente, com olhares melancólicos, as últimas imagens que teria de sua amada Cuba. Ao longe uma serra coberta de grossa vegetação verde escura ainda envolta na neblina da madrugada, a cidade de Mariel, o cais.

​A família calada, apreensiva. Apenas as crianças conversavam e faziam troça com a avó pequenina enquanto diziam já serem quase do tamanho dela. Depois de dada a partida nos motores, soltaram as amarras, o capitão fez soar a sirene da embarcação, manobrou e singrou as águas calmas que circundavam o porto. Era pouco depois de oito horas da manhã.

​À medida que a embarcação afastava-se de terra, o azul turquesa do mar do caribe tornava-se mais e mais intenso. Os passageiros permaneceram na cabine no mesmo nível do convés até que a terra despareceu de vista. Foi quando o capitão bateu na porta da cabine. Juan Enrique olhou pela escotilha e abriu a pesada porta de madeira.

-Pronto –disse o capitão –Estão livres, já não há risco, embora perigo nunca houvesse. Raúl Diaz é bem relacionado, faz o abastecimento de todos os navios e também das casas do governo cubano com os melhores produtos que os navios trazem ao porto. É ele pessoalmente que escolhe tudo que veste, come e bebe a nova aristocracia que governa a ilha. Isto sem ser sequer funcionário público. Com isto, tornou-se uma pessoa importantíssima na hierarquia.

-Que coisa! –exclamou o professor. –e dizer que chegamos a ele por obra do acaso. Ou não?

-Quer dizer que não o conheciam? –perguntou o capitão.

-Não, até ontem meia noite!

-É, -ponderou Rafael –quando Deus quer e determina,tudo se resolve. Bem –continuou –os senhores tem tudo que vão precisar neste barco. Este camarote cabem oito pessoas nos quatro beliches e não tenho outros passageiros à bordo. Trouxe para Mariel um carregamento de pescadomas esou retornando a Playa Del Carmen vazio. Nada há em Cuba que me interesse, então conduzo dissidentes gratuitamente. É como se fosse em agradecimento a Nossa Senhora de Guadalupe!

-Este é mais um golpe de sorte que tem nos acompanhado –salientou Juan Enrique.

-Temos um pequeno refeitório com uma cozinha rudimentar. Os viveres estão nos armários, somos apenas quatro tripulantes e as senhoras podem fazer as vezes de donas desta casa. Sintam-se à vontade para cozinhar. E –reiterou dirigindo-se às crianças –não saiam do camarote a não ser acompanhados de um adulto. A amurada é baixa e a travessia pode jogar um pouco, como não devem ter hábito com o mar, melhor não facilitar. Entendido?

-Sim –responderam todos.

​A viagem durou doze horas, não houve mau tempo e tudo transcorreu bem. Apenas o azul profundo do mar do Caribe fazia companhia aos imigrantes. As borbulhas brancas subiam mexidas pelos hélices e produziam imensas nuances da mesma cor da água do mar: de azul turquesa a verde esmeralda. E Juan Enrique, olhando da amurada o horizonte longínquo deixado para trás junto com as vidas de tantos conhecidos, vislumbrava o futuro apenas incerto. Que certeza teriam do futuro? Nenhuma. Apenas que teriam um assegurado pela coragem, pelas coincidências, pela sorte, pelo destino.

​O porto de Playa Del Carmen era apenas e tão somente um atracadouro com alguns poucos cabeços de aço e um píer de madeira. Atracaram quando já era noitealta. Não houve fiscalização de passaportes. Os passageiros levavam pouquíssimos pertences, algumas mudas de roupas e quase nenhum dinheiro que tivesse utilidade ali. Juan Enrique dispunha de uns poucos dólares ainda do tempo quando fez a pós graduação nos Estados Unidos. Mas serviria para que e até quando?

​O Capitão Rafael indicou um pouso para eles por uma noite. Era uma casa simples de pescador e nada custaria. Era gente que ajudava aos cubanos egressos da Ilha, como muitos outros encontrariam pelo caminho.

​No dia seguinte Juan Enrique procurou uma representação diplomática da Espanha ou dos Estados Unidos. Nada, apenas na cidade de Cancun, a sessenta quilômetros de distância. Ele não dispunha de dinheiro para ficar viajando para baixo e para cima. Fazer o quê?Havia deixado a família na pequena casa do pescador onde passara a noite. Estava começando a ficar preocupado.

​Numa cabine telefônica em frente à praia, consultou uma lista telefônica. Debalde. Resolveu então comprar um jornal. Numa pequena loja viu um exemplar de El Universal. Usou seu primeiro dólar americano, amarrotado e cheirando a naftalina, para comprar um exemplar. Folheou o jornal do princípio ao fim. O que lhe chamou a atenção foi um anuncio quase invisível:

​​

​​Atenção cubanos que chegam ao México.

​​Dispomos de acomodações até que

​​regularizem sua situação. Procure-nos:

​​

e um numero de telefone sem sequer dizer o endereço ou a cidade.Juan Enrique pegou o jornal e voltou para o alojamento. Conversou com Miralda e Rosario, amaldiçoou ter abandonado Cuba, culpou-se por sua imprevidência de fazer uma viagem como esta sem um suporte de quem quer que fosse e sem sequer saber para onde iriam: Panamá, Espanha ou estados Unidos. Foi Miralda, no uso de sua experiência pela idade, que deu a solução:

-Mi hijo, porque não procuramos a Policia?

​O professor achou a ideia de início estapafúrdia, mas aos poucos foi imaginando se não seria uma boa ideia, afinal policias ajudam os cidadãos. E quem mais lhe ajudou nos últimos tempos foi o tenente PorfirioGonzalves. Portanto, nada mais natural que procurar a policia.

​O pescador que disponibilizava a casa, saía cedo para pescar, não tinha família, e não estava em casa. Juan Enrique tinha dúvida se procurava a policia com a família ou sozinho. Bateu na porta da casa ao lado. Uma mulher gorda chegou na janela.

-Senhora –indagou Juan Enrique –onde fica a policia?

-Porque? –quis saber ela –algum problema?

-Não, senhora. Preciso apenas tomar umas informações que só a policia sabe. A não ser que a senhora me diga onde posso conseguir vistos americanos ou espanhóis, a senhora sabe?

-Non, non non –replicou ela. –melhor procurar a polícia.

​E indicou o endereço.

​Como a família estava mais ou menos bem acomodada ali, ele resolveu ir sozinho. Caminhou perpendicularmente à praia. À medida que se afastava, percebia o movimento de automóveis e gente aumentando. Finalmente viu o prédio da policia indicado pela vizinha gorda. Era uma edificação colonial espanhol, pintada de creme com duas grandes janelas e uma porta, tudo em arco. Havia um lance de escada para se alcançar a porta. Ele subiu e abriu a porta. Havia muita gente trabalhando, era um repartição pública cheia de homens fardados. –que história contar?-indagou-se ele.

​Chegou junto ao balcão de madeira gasta pelo uso. Um policial fardado, felizmente mais velho, veio atendê-lo.

-Bom dia, em que posso lhe ajudar?

-Bom dia, senhor. Estou à procura de algum representante diplomático espanhol. Sabe informar se em Playa Del Carmen existe algum?

​O policial retirou o quepe e pensou um pouco e disse:

-Sei que temos aqui um representante comercial da Espanha. Talvez ele possa lhe responder sobre o consulado ou a embaixada na Cidade do México.

-E o senhor poderia me informar a direccion?

-Claro. Espere um pouco.

​O policial foi até uma mesa e depois de pegar uma ficha de cartolina copiou o endereço numa folha de caderno. Entregou a Juan Enrique e informou:

-Fica logo ali perto, não mais que duas quadras.

-Gracias, señor. Asta luego.

-Asta luego.

​Na sida havia uma máquina de café e um garrafão de água. Juan Enrique ficou tentado a tomar um gole de café, estava faminto. Olhou de volta para o balcão e ouviu o velho policial convidar:

-Sirva-se, fique à vontade.

​Juan Enrique serviu-se e tomou o melhor café de sua vida. Adoçou bastante, sorveu o liquido quente e perfumado e depois bebeu um copo de água cheio. Mais uma vez olhou de volta para o balcão mas ninguém estava prestando atenção nele. Gostaria apenas de agradecer a hospitalidade. Saiu do prédio e tomou o rumo indicado. Depois de caminhar pelas ruas da cidade, conferiu o endereço e o numero da casa. Lá estava.

​Era um armazém parecido com o de Raul Diáz. Entrou e indagou a uma funcionária pelo representante comercial da Espanha. Ela pediu que aguardasse um pouco enquanto dirigia-se a uma escrivaninha ao fundo do salão. O homem sentado virou-se para ele, olhou a pessoa que o procurava e mandou que se aproximasse. Juan Enrique estava de barba por fazer e mal vestido para os padrões de um país livre e capitalista. Sentia-se desajeitado.

​Cumprimentou o homem e perguntou pela representação diplomática da Espanha. A resposta foi lacônica. Só havia diplomatas na capital. –Estou num beco sem saída –pensou desanimado.

-Señor –tentou ele –estou com a minha família aqui. Acabamos de chegar de Cuba. Apesar de sermos cidadãos espanhóis, somos refugiados cubanos e preciso de ajuda. Por favor...

-Bem, porque não disse logo? –falou o homem levantando-se da poltrona de madeira. –Venha comigo.

​O homem pegou Juan Enrique pelo braço e o conduziu a uma sala aos fundos. Abriu a porta e o fez entrar, seguindo-o. Nesta sala havia mais umas três pessoas, homens e mulheres trabalhando com máquinas de escrever. Um grande ventilador pendia do teto e girava lentamente.

-Venha –convidou o homem.

​Um outro homem que parecia ser o responsável, levantou os olhos dos papeis com os quais trabalhava e observou atentamente Juan Enrique e o outro funcionário.

-Chefe –disse o que o conduziu até ali. –Temos um refugiado.

​Puxou uma cadeira de madeira e ofereceu a Juan Enrique.

-Conte-me a sua história –ordenou o chefe

​Juan Enrique contou como chegara até ali, disse o que fazia e onde estava. O chefe pegou um formulário e pediu que Juan Enrique o preenchesse. Colocou ali o nome, o estado civil, sua ocupação principal, em companhia de quem estava se refugiando e entregou ao homem. Este leu calmamente e disse:

-Señor, veio ao lugar certo. Seus problemas acabaram. O que deseja fazer? Para onde quer ir?

-Bem, temos família em Porto Camba, na Espanha, próximo a Verín e Castrello do Val, na província de Ourense. Mas não disponho de recursos para ir até lá, pelomenos não sem ajuda.

-Estamos aqui para isso. Esta representação comercial funciona como uma ponta de lança do Comitê para refugiados, tanto de Cuba como da Nicarágua ou do Haiti ou qualquer outro país de Central America ou Caribe. Seus problemas agora se acabaram, meu amigo. Eles agora são nossos problemas. Vamos buscar sua família.

​​​​​***************

​O Baiano estava pasmo com a história de Juan Enrique e sua família. Sem se conter, perguntou:

-Uma vez que sei que tudo acabou bem, já que estão aqui, pode abreviar a minha curiosidade.

-Sabe, meu amigo, a ajuda e a solidariedade de pessoas de bem mundo afora é a coisa mais importante que se pode achar, mas a sorte precisa sempre estar a seu lado. E para ter sorte precisamos de fé. Tudo foi sempre casual, desde o tenente Gonzalves até Carlos López, o representante comercial, passando por Gabriel e Rafael. O Comitê providenciou nossa ida para a Espanha. Miralda, a minha mãe, encontrou os irmãos e ficou morando em Ponferrada. Mas a Espanha estava na época, muito conturbada, então viemos para a Flórida. Meu diploma de matemática foi a minha maior valia. Aliás, o que se aprende, estudando, ninguém toma. Podem surgir ditadores, os facínoras da pior espécie, a não ser que lhe tirem a vida, o que você estudou, aprendeu e exerceu, ninguém toma. Podem confiscar os bens, mas não há como expropriar o conhecimento.

​A reunião foi concluída com uma bela ceia cosmopolita, com comidas de Cuba e bebidas da Espanha.

​O Baiano agradeceu a confiança de terem contado uma história de vida para alguém quase desconhecido.

​Aquele dia mudou sua vida.



*Este conto está publicado no livro Serinhaém Azul do Mar Profundo de Ticiano Leony, Editora Caramurê, 2016

 
 
 

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