As almenaras* e o forte da praia
- Ticiano Leony
- 25 de set. de 2021
- 7 min de leitura
As almenaras* e o forte da Praia
Ticiano Leony
Em alusão à reabertura das ruínas da Casa da Torre de Garcia d’Ávila em 24 de setembro de 2021.
O que é hoje o aprazível balneário de Praia do Forte, à beira-mar no litoral norte de Salvador, foi o primeiro bastião incumbido da defesa da capital-sede da colônia fundada em 1549 às margens da Baía de Todos-os-Santos. O morgado de Garcia D’Ávila comandava na ocasião, um Regimento de Auxiliares composto por três companhias com a função de guarnecer a costa entre o Rio Real e o Rio Vermelho. Conquanto pouco se saiba, a Casa da Torre teve importante papel nos episódios ligados à guerra pela Independência do Brasil, embora distante 14 léguas da barra Norte do grande golfo às margens do qual estava a principal urbe da colônia portuguesa e palco das escaramuças entre portugueses e brasileiros – a cidade de São Salvador da Bahia de Todos-os-Santos.
Com a morte de Garcia de Ávila Pereira de Aragão em 1805, na ausência de herdeiros, o morgado da Torre passou para os Pires de Carvalho e Albuquerque. Foram oito gerações desde Garcia d’Ávila até Ana Maria de São José e Aragão, lideradas por quatro “Garcias d’Ávila e três Franciscos”.
A Casa da Torre de Garcia D’Ávila foi construída em 1551 em um platô no alto da Enseada de Tatu-a-pará. Em estilo medieval europeu, tinha em anexo uma “singela torre” inspirada na Torre de São Pedro de Rates em terras lusitanas, origem do primeiro Garcia D’Ávila, almoxarife da Colônia trazido por Thomé de Souza.
Devido à posição privilegiada de sua edificação, ela acabou por se constituir na “Base Militar da Torre” que guarnecia as estradas em direção ao Nordeste, via litorânea, assim como servia de atalaia ao tráfego marítimo, fiscalizando as esquadras ou simples embarcações rumo à cidade da Bahia. A partir dela, implantou-se um engenhoso sistema de semáforos que teve importante atuação nos tempos das invasões dos holandeses, até que, em 1668 o sistema de avisos e sinais foi oficializado.
O Morgado da Torre era então encarregado da fiscalização e transmissão de sinais através de fachos de fogo, acesos em estopa com óleo de baleia, fulgurantes mesmo à luz do dia e obedecendo a
rígido código. A transmissão dos sinais era vista nas almenaras* da
Aldeia de São João, hoje Jacuípe, da Aldeia do Espírito Santo, hoje
Vila de Abrantes, de Itapoã e do Rio Vermelho de onde era avistado pela Fortaleza de Santo Antônio da Barra que enviava um positivo a
cavalo à capital dando conta da passagem de quem quer que fosse por via marítima.
Não sendo a Casa da Torre uma fortaleza, cuidou o Governo Geral da Colôniade erigir, à beira mar, na foz do Rio Pojuca, um forte de madeira e argamassa, conhecido como Forte da Praia que, em pouco tempo,foi tomado pelas águas. A proteção, no entanto, necessitava ser mantida contra aventureiros e inimigos figadais. Assim, em 1704, o Governador Geral Dom Rodrigo da Costa ordenou que o mandatário da Casa da Torre mandasse edificar na praia, às suas expensas, acima das ruínas da construção anterior e mais protegido das ondas e da maré, mais próximo à foz do Rio Pojuca, a esta altura navegável, o Forte de Tatu-a-pará, em pedra e cal e equipado com canhões que também deveriam ser instalados na colina ao lado do caminho que levava à Casa da Torre e a montante do Porto do Açu existente às margens do rio. Este forte hoje também está desaparecido no mar.
A Casa da Torre propriamente dita, nada tinha de “forte”, era a residência da família que detinha o maior poderio latifundiário do Brasil Colônia e representava o controle territorial, econômico e militar, sem similar na história do Brasil.
Tendo como prioridade a pecuária, a Casa da Torre disseminou a criação de gado para abate e espalhou currais mediante aquisição de terras ou contratos de aforamento, desde a Bahia e o vizinho Sergipe até Minas Gerais, Goiás, Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco e Paraíba. Instituiu a figura do vaqueiro, instalou currais, abatedouros e curtumes, fez surgir povoamentos e estradas boiadeiras que depois se tornaram carroçáveis. Paralelamente à pecuária, descobriu e explorou minas de salitre quando procurava minas de prata, pedras preciosas, ouro e outras riquezas naturais como a carnaúba. Para tanto, a Casa da Torre possuía grandes legiões de trabalhadores, desde escravos, índios domesticados, agregados, posseiros, contratistas e rendeiros que constituíam uma respeitada milícia armada e fardada disposta a enfrentar índios hostis ou quaisquer outros grupos que se interpusessem em seu caminho de desbravamento e conquista.
*almenaras –1.Facho que se acendia nas torres e castelos para dar sinal ao
longe.
2. Torre onde se acendia esse facho.
Na época da guerra pela independência, três irmãos detinham o controle das terras herdadas de Garcia D’Ávila: Antônio Joaquim, Francisco Elesbão e Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque Cavalcanti Machado de Ávila Pereira os quais participaram ativamente da campanha pela expulsão definitiva dos portugueses do Brigadeiro Ignácio Luiz Madeira de Melo de Salvador. Do Exército Libertador, fez parte a Companhia de Voluntários da Torre, com um contingente de aproximadamente três mil combatentes distribuídos em dois batalhões, cada um com quatro companhias além de um batalhão de cavalaria e uma milícia indígena de flecheiros comandada pelo cacique Bartholomeu Jacaré.
Muito se pergunta sobre o fim do domínio da Casa da Torre. Em 1752 Leonor Pereira Marinho -cuja avó tinha o mesmo nome- filha do terceiro Francisco Dias d´Ávila e de Catarina Francisca Correia de Aragão casou-se com José Pires de Carvalho e Albuquerque e seu irmão Garcia d’Ávila Pereira de Aragão casou-se com a cunhada,Ana Tereza de Carvalho e Albuquerque. A família Carvalho e Albuquerque era ligada aos engenhos do Recôncavo, em especial a Antônia Maria de Menezes, do Engenho Mataripe.
Garcia d’Ávila Pereira de Aragão e Ana Tereza não tiveram filhos. A irmã Leonor, no entanto, teve seis: José, Ana Maria, Salvador, Catarina Joaquina, Maria Francisca e Joaquina Maurícia.
Talvez pelo fato de não ter herdeiros, Garcia não mais fez questão de seguir os passos dos seus antecessores e ir cuidar dos domínios do Morgado nos sertões. Por outro lado, acomodou-se na boa vida dos engenhos, onde havia saraus, banquetes e riqueza, conforto e proximidade da Capital da Província. Contribuiu para a derrocada da Casa da Torre a briga entre os meeiros e os desbravadores. Em muitas províncias, os arrendatários começaram a arguir judicialmente o termo de propriedade da terra, fossem títulos emitidos pela Coroa ou escrituras lavradas em notários. Se não havia, eles poderiam se tornar donos, uma vez que a Casa da Torre não tinha como provar a propriedade. Mesmo comportamento teve a Companhia de Jesus,detentora de contratos de áreas contíguas às inúmeras vilas que foram surgindo ao redor das capelas e igrejas por ela erguidos, tornando-se assim a maior opositora à Casa da Torre.
No âmbito familiar o desencontro era a cada dia maior e pior. Conquanto o filho mais velho de Leonor, que tinha exatamente o mesmo nome do pai, José Pires de Carvalho e Albuquerque, não tivesse contraído núpcias e falecido jovem, deixou herdeiros por ele reconhecidos frente a um notário em seu leito de morte: com Maria da Expectação Alves Braga registrou José, Maria e Joaquina e com Maria dos Anjos, mais um José.
Ana Maria de São José e Aragão casou-se com um primo, também chamado José Pires de Carvalho e Albuquerque e teve três filhos, estes proeminentes cidadãos: Antônio Joaquim, Francisco Elesbão e Joaquim, todos Pires de Carvalho e Albuquerque. Todos tiveram intensa participação nas peripécias pela independência, sendo Joaquim conhecido como Coronel Santinho e se tornado o conhecido Barão, depois Visconde de Pirajá.
Catarina Joaquina casou-se com o sobrinho Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque e teve quatro filhos.
E Joaquina Maurícia, a filha caçula, casou-se com Joaquim Ignácio de Siqueira Bulcão que viria a ser o Barão de São Francisco. Tiveram quatro filhos proeminentes no Império, sendo José de Araújo de Aragão Bulcão o Segundo Barão de São Francisco e Joaquim Ignácio de Aragão Bulcão, Barão de Matoim.
Sucedeu que os filhos ditos “naturais” do primogênito José, reconhecidos como tais, ingressaram na Relação da Bahia em busca de seus direitos e representados pelo arguto procurador, Antônio Ferreira de Andrade. Havia membros da família considerados “pessoas principais da Bahia”, tanto que o processo foi parar no Tribunal da Casa de Suplicação de Lisboa onde Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque, tio-avô do falecido, era desembargador. O caso, de tão intrincado, chegou ao Conselho Ultramarino, sofrendo interseção até da rainha, Dona Maria I. Enquanto, ao longo dos anos rolava o processo, desintegrava-se o Morgado da Casa da Torre.
Além do grave problema “intra corporis”, havia no ar as exigências da transição de colônia para reino independente, açodado pelos princípios republicanos oriundos, principalmente, dos Estados Unidos da América. Os títulos nobiliárquicos eram vistos como asquerosos e inaceitáveis, ainda que o Brasil permanecesse monárquico. Assim foi que a partilha dos bens da Casa da Torre tendo demandado tempo imenso, consumiu uma grande soma em dinheiro, obrigando a fragmentação e a venda de dezenas de itens do patrimônio amealhado em trezentos anos. O castelo, abandonado em Tatu-a-pará e começando a desmoronar, foi passado a Domingos Pires de Carvalho e Albuquerque, filho mais velho do Visconde da Torre que não herdou o morgado uma vez que este tipo de instituição havia sido extinto. Domingos, falecido em 1889, era solteiro e não teve herdeiros. A propriedade passou para sua irmã Leonor Maria de La Peña Pires e Aragão, casada com o Coronel José Joaquim Teive e Argolo que a vendeu a Laurindo Régis durante o governo já republicano de Régis Pacheco.
A Casa da Torre assim despareceu.
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Fontes consultadas:
“O Feudo – A Casa da Torre de Garcia d’Ávila:da conquista dos sertões à Independência do Brasil”, Luiz Alberto Moniz Bandeira, 1ªedição, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000
“História da Casa da Torre – Uma dinastia de Pioneiros”, Pedro Calmon, 3ªedição, Fundação Cultural do estado da Bahia, 1983.
“Arquivos da Fundação Biblioteca Nacional, mapoteca e cartografia, via internet
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