
Brayner e os Encourados de Pedrão
- Ticiano Leony
- 2 de fev. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 5 de fev. de 2022
Brayner e os Encourados de Pedrão
Dois religiosos, dois destinos
Ticiano Leony
Já era meio da manhã e o desfile dos Encourados do Pedrão já deveria ter começado naquela comemoração da Independência da Bahia do ano de 2011. Francisco José de Campos Filho, tataraneto do encourado Francisco José de Campos, da Fazenda Massapê, no sertão de Irará, desde que se entendia por gente, trazido pelas mãos da mãe, seguia a tradição da família. Era emocionante assistir à passeata e ao desfile dos caboclos em seus carros alegóricos, mas nada era tão tocante, quanto o desfile dos vaqueiros, visão atual e encourada dos Voluntários de Pedrão.
Passou um vendedor de tabocas com sua lata colorida e seu triângulo, vindo do sentido da passeata. Francisco o interpelou.
-Meu amigo...
-Qué quantas tabocas? –Perguntou o homem vendo Francisco com a esposa e os filhos.
-Quero uma informação? Pode ser?
-Por que não? Se eu suber...
-Você viu se os Encourados estão vindo?
O homem virou a cara de lado como se estivesse decepcionado.
-‘Cê num sube, não, né?
-O que aconteceu?
-Num deixaro os Encourados desfilar!
-Não é possível! –Exclamou Francisco com o ar de maior decepção que a do homem.
-Apois...Um povo aí dos direito dos animá, protetô dos cavalo e das montaria, barrou o desfile.
-Ôxe, e desde quando vaqueiro maltrata seu animal?
Os filhos de Francisco começaram a chorar, ameaçando uma malcriação, inquietos com a conversa. Já compreendiam, não eram crianças tão inocentes.
-Tenham calma! –Disse ele. –Vamos dar um jeito.
-Compre umas tabocas, Chico! –Recomendou Raquel, a esposa. –Pelo menos remedia a situação.
Apesar de muita gente estar passando no passeio apertado e apesar do calor abafado, embora fosse julho, o homem abaixou das costas a lata de listas coloridas, apoiou no chão e deu as tabocas com um pegador metálico, aos filhos de Francisco. Recebeu o dinheiro, pegou o latão pelas alças como um encourado pega seu surrão*, agradeceu e seguiu em frente.
-Vamos embora! –Comandou Francisco e todos obedeceram abrindo caminho entre a multidão.
No automóvel estacionado numa transversal da Rua leovegildo Filgueira, no Garcia, Francisco disse a Raquel.
-Um absurdo, isto. De casa vou averiguar o que aconteceu.
O que Francisco não sabia era que uma entidade protetora dos animais, entrou com uma medida judicial e conseguiu a liminar para os animais não desfilarem e os vaqueiros que vieram de tão longe, com os animais selados embarcados em caminhões-gaiola, negaram-se a desfilar a pé.
-Papai, como é esta história dos encourados? –Perguntou Gustavo, filho mais velho de Francisco que há muitos anos, desde quando ainda era de colo e sem irmãos, era levado à parada do 2 de julho. Francisco explicou com detalhes, afinal era estudioso da história da Bahia, especialmente dos comandados do Frei Brayner, tendo inclusive participado, no Pedrão, da fundação da Associação do Encourados. Começou ele sua dissertação falando de cor e salteado.
-Na segunda metade do século XVIII, nasceram dois rapazes assinalados na província de Pernambuco. De famílias simples, trabalhadores comuns e oficiais livres, ambos resolveram seguir a carreira eclesiástica. Por simples coincidência, ambos foram ordenados no Convento da Ordem do Carmo da Província da Reforma Turonense de Pernambuco. Conhecidos como “carmelitas calçados”, o termo não vem de “Carmo”, mas de ter originalmente a denominação de Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, uma cadeia de colinas próxima à cidade de Haifa, em Israel, desde 1892.
-É longe? –Perguntou Henrique, o filho do meio, querendo participar da aula.
-É longe, muito longe, do outro lado do mundo! –Explicou Francisco pacientemente. E prosseguiu.
*surrão –tipo de sacola ou mochila, de couro ou lona, que os homens do campo carregam nas costas.
-Um dos rapazes era filho de tanoeiro, proprietário de uma oficina, e se chamava Joaquim da Silva Rabelo. Ao se ordenar, como de costume, escolheu o nome de Frei Joaquim do Amor Divino, acrescentando a alcunha “Caneca”, em homenagem ao objeto popular mais produzido na oficina de tanoaria de seu pai Domingos. O outro, José Maria Brayner, ao se ordenar, escolheu o nome de Frei José Maria do Sacramento Brayner.
Neste momento o telefone de Francisco tocou e ele precisou parar a narrativa. Olhou o visor do celular e atendeu a chamada. Era seu conterrâneo Tibúrcio Santiago de Souza, outro descendente dos encourados de Frei Brayner, Ludovino de Souza e Manoel Ferreira Santiago.
-Você viu o absurdo? –Indagou Tibúrcio, assim que ouviu o alô de Francisco.
-Pois é! Claro que vi.
-E o que vamos fazer?
-Amanhã vou ligar para a Associação. Alguma providência deve ser tomada.
-É o que espero! –Concluiu Tibúrcio despedindo-se em seguida.
Francisco olhou para os filhos que continuavam à espera do caso. O pai continuou.
-Eles tinham em comum a erudição, sendo Joaquim exímio aritmético, conhecedor de álgebra e geometria e José, profundo literato. Além de ambos serem excelentes patriotas, eram politizados, ilustrados, poliglotas e tinham liderança. Joaquim, como muitos outros pernambucanos, andava revoltado com o aumento dos impostos que sobrecarregavam a província de Pernambuco, à época a mais produtiva do reino por sua grande produção de açúcar e algodão.
-O que é poligrota? –Quis saber Henrique.
Francisco sorriu e emendou.
-É poliglota, filho, e é como se chama quem tem conhecimento de vários idiomas. –E seguiu –Joaquim, depois largamente conhecido como Frei Caneca por suas ideias patrióticas, acabou envolvido na Revolução Pernambucana, levando de roldão o Frei Brayner, como José se tornara conhecido. Frei José era o secretário do movimento. Também conhecida como Revolução dos Padres pelo envolvimento de grande parte do clero e de muitas pessoas esclarecidas, diferentemente de outras revoltas que tinham a participação de escravos, índios, caboclos e cafuzos, gente do populacho, como se dizia antigamente, a Revolução Pernambucana foi aniquilada em míseros setenta e cinco dias. Foi a primeira vez que a república foi proclamada no Brasil. Muitos presos, entre eles Frei Caneca e Frei Brayner. Foram então conduzidos aqui para a Bahia para serem julgados no Tribunal da Relação. Depois de muitos sofrimentos nos calabouços do Convento do Desterro onde aguardaram o decorrer do processo, finalmente foram condenados a quatro anos de reclusão.
-Povo malvado! –Exclamou Gustavo.
-Como castigo à província, dela foi retirada a Comarca das Alagoas. Era a maneira da Corte manter submissa a nação colonizada. Pelo medo!
Francisco continuou.
-Ao fim deste período, Frei Brayner pediu ao arcebispado sua permanência na Bahia, enquanto Frei Caneca, ainda imbuído do espírito republicano, resolveu retornar a Pernambuco.
Frei Brayner foi conduzido à vila da Purificação dos Campos, atual Irará e daí responsabilizado pela aldeia que crescia em volta da igreja do Santíssimo Sacramento no povoamento denominado Pedrão.
Em 25 de junho de 1822, ao começarem as escaramuças pela independência do Brasil de Portugal, Frei Brayner foi outra vez estimulado pelos doutrinamentos de Frei Caneca e em outubro dirigiu missiva ao Conselho Interino da Vila de Cachoeira, para seguir com uma tropa de voluntários para a guerra. Declarara ele ter conhecimento em guerrilhas e ter sob suas ordens alguns destemidos voluntários.
-Chico! –Interrompeu Raquel que também era de Pedrão e havia chegado para escutar a conversa. –Agora que caí na história.
-Como assim?
-Lembra do quadro de Antônio Parreiras que está no Palácio Rio Branco?
-O primeiro passo para a Independência da Bahia! –Respondeu Francisco em tom solene.
-Se aquele dia retratado foi 25 de junho de 1822 e padre Brayner só pediu para se incorporar às tropas para a guerra da Independência em outubro, como é que Parreiras colocou dois encourados na tela?
Francisco se calou. Ele, o estudioso, membro do Instituto Geográfico e Histórico, aluno de Cid Teixeira e Luiz Henrique Dias Tavares, não havia se apercebido do caso, e foi Raquel que notou! –Que pessoa atenciosa! –Pensou ele antes de responder.
-Talvez fosse apenas uma alegoria e não os verdadeiros Encouraçados de Pedrão. Antônio parreiras leu e estudou muito para pintar a obra. Na certa seu subconsciente o traiu, ou foi uma licença poética. Veja bem que o quadro só foi concluído em 1931, ele deve ter pintado dois vaqueiros do sertão, não necessariamente os de Frei Brayner. Consegui lhe convencer?
-Pode ser, mas para mim, apenas o quadro de Oseas Santos representa de fato os Encourados de Pedrão. Mas siga a história que os meninos precisam ir dormir.
-Está bem! –Aquiesceu Francisco seguindo com a conversa.
-Ainda que a resposta não chegasse à distante aldeia de Pedrão, Frei Brayner convocou seus párocos. Atenderam ao chamado, trinta e nove homens em idade de combate, sendo dezenove casados, entre eles nossos antepassados. Vestiram-se com suas roupas de vaqueiros, chapéu de couro, o gibão que fazia as vezes de túnica, algibeiras, calças de algodão, perneiras de couro, um surrão às costas, botinas, rolós ou chinelas de sola, cravinas, bacamartes, espingardas de encher, garruchas, facas curtas ou longas, espadas ou espadins. No chapéu de couro, Frei Brayner mandou costurar uma placa oval de latão gravada com um “P” coroado. Marcharam à pés ou montados.
Em 4 de novembro chegou a ordem do Conselho para os voluntários de Pedrão marcharem para a Vila de Cachoeira. Em 8 de novembro Labatut acolheu Frei Brayner e seus Encourados no Quartel do Engenho Novo, no Recôncavo e daí os liderou para a batalha de Pirajá quando foram vitoriosos. Em 5 de dezembro de 1822 a tropa foi definitivamente incorporada ao contingente armado do Exército Pacificador, sem que um Encourado sequer tenha perecido.
-Muito bem! –Aplaudiram todos. –E que fim levou Frei Brayner? –Perguntou Raquel.
-Depois que os portugueses fugiram de Salvador em suas caravelas, a tropa dos Encourados permaneceu dando proteção à cidade até o exército ser desmobilizado. Frei Brayner não voltou para o Pedrão. Ele foi promovido a capelão da Relação Civil, recebeu as comendas das ordens de Cristo e do Cruzeiro e o galardão de capitão de 1ª linha. De Salvador foi para Itaparica onde foi Juiz de Paz, depois vigário, vindo a falecer em 1850.
-E Frei Caneca, papai? –Perguntou Gustavo.
-Bom que você não tenha se esquecido dele. Frei Caneca voltou para Pernambuco depois de cumprir os quatro anos de pena. Mas não se corrigiu, continuou conspirador. Em 1824 liderou um movimento chamado Confederação do Equador que foi igualmente aniquilado. Frei Caneca foi preso e condenado à morte na forca. No dia da execução nenhum carrasco aceitou cumprir a pena. Então foi constituído um pelotão de fuzilamento e apenas uma arma estava carregada, para que nenhum soldado se sentisse culpado de matar um membro da igreja. Depois de morto, seu corpo foi depositado à porta do Convento do Carmo em Olinda, onde foi sepultado.
-Pronto, meninos, já para a cama! –Comandou Raquel.
Com os olhos vermelhos de sono as crianças adormeceram e sonharam com a liberdade conquistada pelos seus patrícios para o bem do Brasil.
Agora faltava reintegrar os Encourados de Pedrão ao desfile do 2 de Julho, mas isto era tarefa para Francisco e Tibúrcio.
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Fontes
Elane Cruz Lima de Jesus, Pedrão, símbolo da luta pela Independência da Bahia, UCSAL, 2008
Nelson de Paula Pereira, A Independência da Bahia 2 de julho de 1823, blog O Historiador #200805, de Paula Historiador blogspot, 2009
Obras políticas e literárias de frei Joaquim do Amor Divino Caneca colecionadas pelo Comendador Antônio Joaquim de Mello, 1ª edição, Typographia Mercantil, Recife, 1875.
Adorei.