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Dona Sancha, a preguiça encantada

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 30 de mai. de 2021
  • 5 min de leitura

Dona Sancha, a preguiça encantada

Ticiano Leony


​Não fosse a lerdeza das preguiças e Dona Sancha não teria sido apanhada no contrapé.

​Há muitas gerações de bichos-preguiça-de-coleira, ela e sua família moravam ali naquelas matas do entorno do Castelo, numa reserva vedada, até então chamada Sapiranga. O trecho mais fechado, mais denso, ia da colina de Tatuapara até a margem esquerda do Rio Pojuca e a sua foz na praia. Era o último remanescente de Mata Atlântica naquela região de beira-mar. O contraste do verde da floresta com o azul do oceano, emoldurado pelas areias brancas, desde que os descobridores chegaram por ali, é coisa linda de se ver, principalmente nos dias de céu claro e sol brilhante.

​Na mata, em meio às árvores frondosas, sempre viveram bichos, muitos bichos, desde aves até roedores, mamíferos diversos, insetos, répteis e batráquios e até humanos nus, nativos da terra. Então vieram os humanos-vestidos. Primeiro derrubaram as árvores de Pau Brasil e retiraram os toros. Depois foram derrubados e levados embora os itapicurus, os jequitibás, os ipês, as sucupiras-malha-de-sapo, o pau d’arco e outras árvores de madeira de lei. Foram ficando as de menor prestígio como o pau-pombo, a copaíba, a sapucaia e os dendezeiros, os pés de ouricuri e piaçava.Mas ainda assim era agradável morar ali, subir pelos galhos até a parte mais alta das copas das árvores, ver os cipós floridos, as bromélias coloridas e as ramas de folhas bem verdes.

​Mas os humanos-vestidos nunca estavam satisfeitos. Do alto do pau ferro, em meio aos gravatás, Dona Sancha apreciava preocupada a derrubada de árvores para construção de moradias, estradas, caminhos e outras coisas mais complicadas. Ela olhava para o oeste, do outro lado da faixa preta por onde trafegavam os monstros barulhentos, onde vários de seu conhecimento e de sua família já haviam perecido esmagados pelas rodas em velocidade astronômica. Ela temia a jornada. Lá, no horizonte longínquo ainda havia árvores e florestas. –Será que consigo mudar para lá? –Perguntava-se Dona Sancha.

​Pouco a pouco ela via com seus olhos mortiços e de pálpebras lentas, as árvores irem abaixo ao som de motores barulhentos, o barulho melancólico das fibras dos troncossendo cortadas, dilaceradas e depois de lascadas, o troar do tombo do tronco imenso. A cada dia o barulho chegava mais perto dela. Os outros bichos como as raposas, os quatis, os caititus, as capivaras, os macacos e saguis, as cuícas, os sariguês e até as cobras já haviam se mudado, mesmo com o risco da travessia do tapete preto. E ela, ali do alto, esperava o quê?

​Um dia ela resolveu se reunir com os outros de sua família para determinar a mudança. Foi exatamente neste dia que os humanos-vestidos chegaram até a embaúba onde ela estava saciando a sua fome matutina, comendo seus frutos em meio às folhas prateadas que refletiam os raios de sol nas gotículas do sereno da noite.

​Primeiro foram palavras de ordem, depois o barulho da máquina. Lá do alto de onde estava, ela sentia o trepidar do tronco sendo serrado. Se ela fosse ágil como um macaco-prego ou um sagui, ela teria pulado para outro galho ali adiante e se safado. Mas sua lerdeza, sua lentidão, sua indisposiçãopara o movimento rápido, acabaram sendo fatais. Depois que o tronco vibrou e tremeu, ela percebeu a velha embaúba fraquejar, curvar-se e ir célere em direção ao chão,com ela presa pelas longas garras aos galhos finos da parte mais alta da copa, em meio às folhas recortadas da grande árvore. O tombo foi enorme, não haveria como escapar. Ainda mais que a cabeça de Dona Sancha bateu numa rocha que aflorava do chão macio.

​Então ela já não ouviu mais nada quando um humano-vestido se aproximou de seu corpo inerte.

-Puxa! –Exclamou ele –Tinha um bicho-preguiça na copa. Está mortinho-da-silva! Bicho lerdo! Que droga!

​Outro chegou perto, se abaixou e pegou nos pelos longos e dourados de Dona Sancha.

-É! –Disse ele –Não tem jeito. Pode deixar este bicho aí, a carcaça apodrece e pronto.

​E seguiu adiante em busca de outras árvores para abater. A ordem do dono da terra era deixar apenas as árvores de madeira-de-lei. O resto do dia passou calmo, o corpo da preguiça ali, abandonado. De tarde o sol foi embora e no horizonte, como se estivesse saindo de dentro do mar, surgiu uma lua imensa, vermelha e redonda. Os raios escarlates penetraram na terra através das copas das árvores da floresta. Um dos raios iluminou o corpo da preguiça caída no colchão macio de folhas de embaúba. O bicho então se mexeu. Abriu os olhos. –Estou com muito frio! –Pensou Dona Sancha. –Melhor levantar!

​Ela se sentou desnorteada, passou a mão de unhas longas pela cabeça dolorida. A boca estava seca, amarga. Lambeu os beiços e viu que poderia se arrastar como sempre fazia e subir num pé de pau d’alho que fora poupado pelas máquinas. Arrastou-se e alcançou o tronco. Os raios da lua a tudo iluminavam. Parecia que o mundo havia ficado dourado. Ela se agarrou ao tronco e foi subindo, devagar e sempre como fizera a vida toda. Lá do alto ela viu o rastro da lua no mar. Um rastro prateado e liso e no alto, a lua avermelhada. Acomodou-se para passar a noite.

​Cedo os pássaros começaram a cantar. O sol já estava quente quando os mesmos humanos-vestidos chegaram. Um disse ao outro olhando e apontando para o chão.

-A preguiça não está mais aqui! Deve ter sido comida por algum cachorro-do-mato.

-Ou sobrevivido e ido embora –contrapôs o outro.

-Qual o que! Ela estava mortinha da silva.

​E seguiram para o trabalho.

​A rotina dos homens-vestidos era sempre a mesma, todos os dias, naquele tempo todo. Então um dia eles se atrasaram para retornar. Um deles havia se acidentado o queretardou a volta. Foram pegos na floresta pelo escuro da noite. Teriam que zanzar até encontrar o caminho de volta. Uma trilha qualquer que os conduzisse para fora da mata escura, naquela noite tenebrosa, ameaçando chuva, sem lua e sem uma estrela no céu tapado de nuvens. De repente um deles olhou para o alto. Arregalou os olhos.

-Parem aí! –Ordenou ele.

-Por que? O que houve? –Perguntou outro.

-Olhem praquilo ali!

​Ao olharem para onde o outro havia apontado, viram uma luz forte no topo de uma árvore.

-O que será aquilo?

-Esconjuro! –Gritou outro.

-O que lhe parece?

-Um bicho, um animal brilhante!

​O que eles viam fulgurava contra o céu escuro, parecia ser algo em chamas, como um fogo fátuo, fulgurante e de formato irregular. Enquanto eles estavam ali estatelados, meio apavorados pela visão, o clarão começou lentamente a se mover. Não em direção a eles, mas contrária. De vez em quando, a luz parava, parecia girar a cabeçasobre o tronco esguio, olhando para o grupo e então seguia adiante lá em cima da copa das árvores. Eles foram seguindo o bicho facilmente, embora muito devagar, até que chegaram ao limite da floresta e encontraram a trilha. Já passava da meia noite.

​Eles então passaram embaixo da árvore onde estava a luz brilhante e ainda olharam para cima a tempo de ver o bicho se voltar e retornar para a floresta.

​Um dos homens-vestidos se virou para o outro e disse:

-Achei que aquele facho de luz fosse um bicho-preguiça.

-Você está delirando! –Disse outro –Como pode um bicho-preguiça com luz própria?

-Como pode, eu não sei, mas foi ele que nos guiou para fora da mata.

​Então um terceiro falou:

-Parecia a preguiça que morreu aqui quando derrubamos a embaúba.

-É! Ressuscitou, virou um facho de luz e veio nos guiar na floresta. Devia ser uma alma de preguiça! –E gargalhou alto.

-O que foi não sei dizer –falou um deles –Mas que todos nós vimos e vivemos o acontecido, disto não tenho dúvida.

-‘Tá bom! –Concluiu outro –Agora temos na Sapiranga uma preguiça encantada!

 
 
 

1 Comment


Andrea Andrade Sauer
Andrea Andrade Sauer
Jun 24, 2021

Chimfrim, o sariguê e outros bichos é um livrinho voltado ao público infantil que vai encantar as crianças que apreciam ouvir a voz dos bichos, brincar de parlendas , trava-línguas, atividades que são parte da cultura e do folclore brasileiro e que, além de lúdico, possibilitam desenvolver a comunicação oral. Para mim, avó de dois meninos que amam ouvir e contar histórias, uma surpresa: as narrativas do autor se constituem numa denúncia sobre a destruição da fauna e da flora de Praia do Forte, município de Mata de São João no estado da Bahia . Um recorte sombrio do que assistimos diariamente nas mídias dessa país. Parabéns Ticiano pela ousadia: mostrar as crianças o valor da preservação do meio ambiente.

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