
Doutora Dora, a coruja
- Ticiano Leony
- 4 de fev. de 2022
- 7 min de leitura
Atualizado: 5 de fev. de 2022
Este caso será publicado no livro Sapiranga, a mata, o rio e o mar em volta
Doutora Dora, a coruja
Ticiano Leony
Mestre João, conceituado construtor da região da Praia do Forte, foi contratado por um médico de renome do sul do país, para construir sua casa no alto do Condomínio Praia Bela. O doutor e sua esposa contrataram um arquiteto conhecido para projetar a casa de seus sonhos, onde esperavam passar os anos depois de aposentados com os filhos e os netos. Seria um projeto audacioso, com muitas áreas envidraçadas, pé direito duplo, incorporando a natureza em volta ao interior da casa.
O processo trabalhoso envolvia uma série de alvarás da Prefeitura Municipal e era, por isto mesmo, muito abrangente. Havia plantas do projeto arquitetônico e construtivo, projeto elétrico, luminotécnico, hidráulico e sanitário, cálculo estrutural e a chamada “cereja do bolo”, que compreendia o parecer ambiental com a consequente supressão das árvores remanescentes da Mata Atlântica ainda existentes na área do terreno.
Foi chamado um Engenheiro Florestal para fazer as indicações pertinentes. Bem no meio da área na parte mais alta do loteamento, algumas árvores frondosas teimavam em sobreviver ao avanço do progresso. Um vistoso Pau d’Arco, uma sibipiruna, dois paus-ferro, um Itapicuru imenso e, sobre todos eles, um monumental Jequitibá. Emaranhados nos galhos e troncos, cipós de Imbé, cipós-cravos e, coroando as forquilhas dos galhos, lindas bromélias de folhas coloridas. Nos caules dos pés de Ouricuri, piaçava e nos dendezeiros, bonitas samambaias-de-metro lançavam suas folhas imensas em busca de uma réstia de luz. Era, por assim dizer, uma pequena amostra do que havia sido a Mata em tempos idos, na Sapiranga e ali na subida do caminho para o Castelo.
Nas árvores habitavam tucanos, papagaios, outros passarinhos pequenos como sanhaços e bem-te-vis e outros ainda menorzinhos como caga-sebos, suiriris e japacanins. Num oco do grande Jequitibá, morava Doutora Dora, a coruja. E por lá, zanzava, nos dias quentes de verão, o Macaco Pilau. Viviam todos ali na maior paz, fosse tempo de chuva quando o córrego no fundo do terreno ganhava água extra, ou no tempo de sol quando, sob as copas das frondosas árvores, o clima era sempre fresco e agradável.
Mestre João acompanhava o Engenheiro Florestal na vistoria do lote.
-Está difícil a situação aqui! –Disse o engenheiro. –As árvores são protegidas, não vou ter como recomendar a supressão.
Do alto da copa da sibipiruna, o macaco Pilau observava com atenção o movimento dos homens-vestidos.
-Quer dizer que a obra não poderá ser feita? –Indagou o Mestre.
-A rigor, não, a não ser que...
-Que jeito tem? O doutor vai ficar decepcionado se não puder fazer a casa aqui.
-Bem, jeito há, mas custa caro.
-Como é o jeito? Preciso saber para conversar com o doutor. Ele me liga duas, três vezes por dia, ansioso.
O engenheiro prosseguiu.
-Ele pode adquirir uma área fora daqui da Sapiranga, onde haja várias árvores como estas, e propor que se substitua a reserva.
-Não entendi... –Confessou o Mestre.
-É como se fosse uma compensação. Ele adquire uma área quatro vezes maior do que esta, preservada, e com árvores do porte destas e ganha o direito de derrubar estas aqui.
-E isto é justo?
-Pode não ser justo, mas é a lei. Funciona assim.—Explicou o Engenheiro. —Depois que a Fundação passou a APP para ser administrada pelo município, era para contornar as regras federais e os alvarás saírem mais rapidamente. Só que ainda não foi o bastante, graças a Deus!
Então os dois saíram do terreno, cada qual em seu carro e se foram.
-Como foi a conversa? –Perguntou Pedrito, o papagaio ao Macaco Pilau.
-Não entendi direito, muito lero-lero, mas conversaram que vão comprar outro terreno com outras árvores para poderem derrubar estas aqui.
-Resolve o problema deles, mas não o nosso! –Ponderou Silvino, o Tucano.
-Vocês precisam compreender que já perdemos esta guerra! –Cantou Pereira, o Bem-te-vi.
-Para você, Pereira, isto não é problema. Você pode voar daqui para a beira da praia e morar por lá com Nena, a sabiá, Olavo, o canário-da-terra, Guga, o cardeal, até Miraldo, o sofrê e Dona Vana, a maritaca, onde há árvores estrangeiras, leucenas, algarobas, palmeiras exóticas... –Contestou Pedrito. —E eu? Corro até o risco de ser aprisionado num poleiro com uma corrente na pata para fazer graça para os humanos-vestidos e ficar ouvindo os idiotas pedirem repetidamente: --Dá o pé, louro! Dá o pé louro! Louro uma privica, sou de penas verdes e amarelas! Nunca tive cabelo, então nunca fui louro, nem moreno! Aí eu começo a xingar e eles ainda acham graça!
-Hahahahaha! –Riram os outros com a conversa de Pedrito.
-É! Agora mesmo um morador de lá importou, a peso de ouro, umas palmeiras com um nome esquisito, creio que são washigtonias! –Informou Silvino.
-...E muito sem graça! –Completou Pereira.
-O caso é bastante sério! –Ponderou o macaco Pilau. –Meu primo Nico, o sagui, também mora por lá, mas ele é pequeno, entra nas casas e até convive em paz com os humanos-vestidos, mas eu sou grande, poderia ser caçado e até perseguido. Também corro o mesmo risco de Pedrito de ser aprisionado e amarrado pelo meio por uma corrente. Nunca mais vou poder me balançar nos galhos das árvores, nunca mais vou saltar de um galho para o outro do Itapicuru. Até meu rabo vai perder a utilidade, porque nunca mais vou me pendurar de cabeça para baixo. Aí, adeus liberdade!
-Só quero saber o que vamos fazer! –Disse Silvino afiando o bico na casaca de um galho.
-Tenho uma ideia! –Exclamou Pedrito. –Vamos conversar com a Juíza Dora. Ela é estudada, há de ter uma ideia para nos tirar desta enrascada.
Então saíram todos em direção ao oco do Jequitibá. O Macaco Pilau, o tucano Silvino, o papagaio Pedrito, o bem-te-vi Pereira e ao longo do caminho outros foram se juntando ao grupo, até a preguiça, Dona Mirtô, ameaçou ir, mas no seu ritmo, não chegaria a tempo. Então ela sugeriu que chamassem os bichos do chão, Tintim, o sariguê, primo de Chinfrim, a raposa, Dona Filó, prima de Dona Fulô, Góia, a jiboia, Tati, o quati, Ziraldo, o caxinguelê zangado, Joaquim, o tamanduá-bandeira e Doutor Armadillo, o tatu. O macaco Pilau foi encarregado da missão. Desceu para os galhos mais baixos da sibipiruna e começou a guinchar chamando os outros bichos.
Silvino foi o primeiro a chegar ao oco da coruja. Doutora Dora estava assentada num galho perpendicular à sua morada. Rapidamente Silvino resumiu o problema.
-Não podemos fazer a reunião aqui. É muito alto para os bichos do chão.
No fundo do terreno os homens-vestidos haviam construído uma cerca telada e plantado muitas mudas de sanção-do-campo para fazer uma sebe e proteger o futuro condomínio. Para lá seguiram. A juíza Dora pousou na estaca de eucalipto mais alta da cerca e esperou com Silvino a chegada dos demais bichos. Em pouco tempo estavam todos lá, menos Dona Mirtô.
O macaco Pilau começou a narrativa do que vira. Depois falou Pedrito com a sua revolta. Foi aclamado por todos e teve tantas palmas que, verde e amarelo como é, pensou em se candidatar a presidente. A assembleia estava em polvorosa, muitos falavam ao mesmo tempo, até Joaquim, o tamanduá-Bandeira, que não é de muita conversa, estava sussurrando no pé do ouvido de Dona Filó sugerindo chamarem dona Chupica, a onça-pintada.
-Ordem! –Gritou a Juíza batendo seu martelo na longarina de cima da cerca –ordem na corte!
Os bichos se calaram.
-Alguém gostaria de se pronunciar? –perguntou ela.
Doutor Armadillo deu um passo à frente.
-Excelência, conquanto muitos digam, como o Pereira Bem-te-vi, que a guerra está perdida, não devemos desanimar. Somos animais protegidos. Nenhum humano-vestido vai se arriscar a colocar as mãos em algum de nós, membros da fauna brasileira.
-Mas uma vez que muitos desobedecem, o que vamos fazer? –Perguntou o Macaco Pilau.
-Bem, tudo que temos que fazer é descobrir o dia da tal vistoria que o humano-vestido fará. Neste dia, apareceremos todos de uma vez, ao mesmo tempo e em maciça quantidade. Vamos convocar todos os parentes de Pedrito, até Dona Yara, a arara, todas as irmãs de Dona Vana, a maritaca, toda a família do Senhor Tintim e do Macaco Pilau. Na hora, os senhores que tem voz, que não é o meu caso, vão chilrear, piar, cantar, urrar, gritar, se for o caso convocaremos Dona Alice, a araponga, para comparecer e bater, mais alto que possa, a sua bigorna. Se formos capazes de fazer um grande barulho, as árvores estarão protegidas e consequentemente nós também estaremos.
-Vamos votar! –Sugeriu a Juíza –Está aberta a pauta. Alguém gostaria de se manifestar contra a proposta do Doutor Armadillo?
Ela olhou em volta como era sua característica, arregalou ainda mais os olhos e disse:
-A moção do Doutor Armadillo está aprovada por unanimidade. O Macaco Pilau está incumbido de convocar todos os animais e de pedir ao seu primo Nico, que frequenta as casas dos homens-vestidos, que descubra o dia da tal vistoria. Dou por encerrada a sessão.
Os bichos se dispersaram.
Nico fuçou as casas da vila de Praia do Forte, entrou no escritório do arquiteto e Tico, outro primo que morava em Imbassaí, onde fica o escritório da Prefeitura, começou a espionagem. Finalmente, alguns dias depois, Maneco, tio do Macaco Pilau, descobriu a data e deu o alarme.
Na manhã do dia aprazado, Mestre João chegou ao terreno com o Engenheiro Florestal, o Arquiteto, fiscais da Prefeitura e dos institutos de proteção do meio-ambiente. Desembarcaram de vários veículos. Ao se posicionarem em frente ao terreno, a Doutora Dora piou alto. Era o sinal. Todos os bichos começaram a se manifestar e muitos, como o Macaco Pilau, Nico, Maneco e até Dona Mirtô, se mostraram lindamente.
Parecia até um desfile alegórico. Goia, a jiboia e mais duas amigas, embora não fizessem qualquer barulho, saíram de seu mimetismo e apareceram para os humanos-vestidos, assustando-os. Tatus da família do Doutor Armadillo, desfilaram pela rua seguidos de Joaquim e sua família, Dona Filó rosnou, o sofrê cantou, o cardeal assobiou, um bando de canários-da-terra cantou melodiosamente, Bem-te-vis avisavam bem-te-viiiiii! Dona Vana, a maritaca e suas inúmeras irmãs e primas alvoroçadas pelos galhos, exibiam-se dando voos acrobáticos sobre as cabeças dos homens-vestidos. Até Nena, a sabiá, expert na técnica dos voos rasantes, deu o ar da sua graça. Silvino e Pedrito tinham trazido todos os seus parentes da Sapiranga, do manguezal e da tapera, Dona Yara, a arara, gritava alto e em bom som, desafinado e estridente, Dona Alice Araponga soava agudo a sua bigorna. O barulho era ensurdecedor, tanto que os humanos-vestidos mal puderam conversar.
Depois de alguns minutos, olharam-se uns para os outros, entraram nos carros e foram embora.
E foram embora para nunca mais voltar.
Mestre João ligou para o doutor.
-Parecia missa encomendada! –Disse ele ao telefone. –Todos os bichos da mata estavam lá e, por coincidência ou não, bem na hora que a comissão de vistoria chegou.
-E eu vou perder o dinheiro que paguei pelo terreno?
-Não senhor. Eles estão fazendo outro loteamento bem junto do lote do senhor. Vão dar ao senhor dois lotes como uma compensação e transformar o terreno 181 numa reserva da fauna e da flora.
-Ainda bem. E neste novo também tem árvores?
-Tem, mas lá, o senhor vai poder construir! A não ser que haja outra coincidência como a de ontem!
Lindo. Como sofre a natureza nas mãos do homem.