top of page

Era uma vez...de verdade Uma história original do Barão de Cotegipe

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 25 de mai. de 2021
  • 16 min de leitura

Publicada no livro Assuruá-Todos temos os nossos segredos.

Era uma vez...de verdade

Ticiano Leony

quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?*

​​​João Maurício Wanderley saiu com pressa de seu gabinete. Dirigia-se para uma importante reunião no Salão Nobre da Associação Comercial da Bahia. A carruagem já o esperava e Genésio, o cocheiro, estava a postos para abrir a porta para o Barão de Cotegipe, que havia sido presidente da Província da Bahia até 1855. Agora era Senador do Império, prestigiado, rico, senhor de dez engenhos e dono de muitas fazendas de criação. Era também controlador do Diário da Bahia, fundado com seu amigo Demétrio Cyríaco Tourinho.

Enquanto a carruagem transportava seu ilustre passageiro em direção à Praça Conde dos Arcos, houve um estrondo seguido de um forte relâmpago embora fosse dia, o céu estivesse azul e limpo, quase sem nuvens. Então, a paisagem vista pelo Barão começou a mudar. O veículo já não balançava e trepidava como antes enquanto transitava sobre as pedras irregulares que pavimentavam

*até quando abusarás, Catilina, da nossa paciência?

as ruas. A carruagem parecia fazer um barulho e o cocheiro, como que por encanto, estava dentro do veículo num banco à frente. Já não havia cavalos e,apesar disso, a carruagem deslocava-se numa velocidade maior que a inicial.

-Genésio –indagou o Barão ao condutor –O que está acontecendo? Onde estão os cavalos?

-Barão, não sou capaz de vos responder. Também estou besta sem compreender o que está se passando. Olhai para fora. Os outros coches também não estão sendo puxados por animais e mesmo assim, andam.

-E esta roda aí na tua frente, para que serve?

-Deve de tá no lugar das rédeas, Barão.

-Então, homem, para esta coisa. Estou começando a sentir náuseas, tal a velocidade que desenvolvemos.

Genésio, instintivamente, puxou para si uma alavanca que estava à sua direita e pisou num pedal como se fosse o da própria carruagem. O automóvel aos poucos foi parando até atingir a imobilidade. Atrás dele, outros veículos começaram a apitar como trens.

-Genésio, parece que aqui não se pode parar. Onde estamos?

-Na entrada da Rua Nova da Princeza.

-Que coisa! E eu não reconheço quase nada. Vês, as pessoas vestem-se de modo completamente diferente de nós.

As buzinas continuaram a tocar.

-Genésio, desloca esta coisa para fora do caminho. Devemos estar interrompendo e atrapalhando os demais e eles já estão impacientes! –Ordenou o Barão.

O cocheiro então empurrou a alavanca para adiante e pisou no pedal. Nada aconteceu. Mas havia outro pedal ao lado, mais abaixo. Genésio colocou o pé devagar sobre ele e o veículo deslocou-se lentamente. Ele então girou a “rédea” para a direita, liberando o tráfego para os outros, que passaram xingando e acenando com braços e mãos. O Barão saltou da “carruagem”. Afastou-se até a calçada e olhou para o alto. Havia construções enormes,envidraçadas, altas, tão altas, que pareciam tocar as nuvens. Os transeuntes passavam por ele e olhavam-no com desconfiança. O cocheiro também saltou.

-Senhor Barão, onde estão os cavalos?

-Como vou saber, Genésio! Observe as vestimentas das pessoas! Ninguém usa chapéu, ninguém porta bengala, as roupas das mulheres são curtas e sem anquinhas! Estou pasmo! Onde viemos parar? Em outra dimensão? Será que morremos na hora do estrondo lá atrás?

-Não sei, Barão. Mas vou passar a saber.

-Como, Genésio?

-Ora bolas, vou perguntar.

-Estás com um linguajar inapropriado! Onde já se viu dar a mim uma resposta assim, chula?

-...

-Ora bolas? Onde aprendeste isso?

-Um momento, Barão. Volto já.

Genésio então se afastou um pouco. Estava com seus trajes de cocheiro, mas o rebenque havia desparecido junto com a carruagem. Ele foi caminhando em frente, admirado com os prédios, os automóveis, ônibus, veículos enormes carregados de gente e de mercadorias, o calçamento da rua, as pedras brancas e pretas que formavam desenhos ali onde ele estava pisando. Uma negra vistosa vinha caminhando em sentido contrário.

–Deve de escrava como eu! –Pensou Genésio. Atalhou a mulher.

-Dona, tu pode me explicar umas coisa?

A mulher parou de caminhar. Tinha um ar debochado e parecia alegre, de bem com a vida, sorridente, lábios pintados de vermelho contrastando com os dentes alvos e um torço branco na cabeça. Usava um vestido estampado, bem florido e curto, acima dos joelhos.

-Tu me conhece? –Perguntou a mulher.

-Não, não conheço.

-Tu não parece daqui...

-Parece que não... –Genésio respondia com um ar meio abobalhado.

-Tu é de onde?

-Da Bahia.

-Aqui é a Bahia, ora!

-Eu sei que é a Bahia. Mas onde é que a gente ‘tá?

-Na Rua Portugal, no Comércio, na Cidade Baixa, ôxe!

-Entonce nós ‘tamos no mesmo lugar que nós ‘tava... Mas a rua trocou de nome.

-Trocou, não. Desde que eu me entendo por gente, Rua Portugal é Rua Portugal.

-Tu sabe adonde é a Associação Comercial?

-Aí adiante. Pode seguir em frente e tu chega lá. Por que tão usando essa roupa esquisita? Parece roupa de museu. É alguma novela? Algum filme?

-Novela? Nem sei do que se trata, tampouco...como é o nome da outra coisa?

-Filme, homem. Fita de cinema. –Ela respirou fundo e disse –eu me chamo Cleonice. E tu?

-Genésio.

-E o outro artista, ali? –Perguntou ela, apontando para o Barão –é quem?

-Ele é o Doutor João Maurício Wanderley, Barão de Cotegipe.

-Hummm, mingane quieu gosto! Barão de Cotegipe é uma rua na Calçada. E tu vai me dizê qui aquele ali é o próprio, que já morreu há muito tempo?

-Já morreu, é? Dona Cleonice, se achegue pra cá. Venha conversar mais o Barão pra ver se esclarece alguma coisa mais.

-Tenho medo –disse a mulher –falar com quem já morreu...

-Ele não morreu coisa nenhuma. Tá ali vivinho da silva!

-Então tá.

Os dois se encaminharam pela calçada em direção ao Barão. João Maurício suava em bicas.

-Demoraste, Genésio! –Admoestou o Barão admirado com a vestimenta de Cleonice. –Lembra-te que quando terminar a reunião ainda vou almoçar em casa. Dona Antônia Thereza me espera.

-Barão, esta senhora aqui é Dona Cleonice.

O Barão olhou a mulher de cima abaixo, como se a estivesse medindo, indignado.

-Desde quando se trata uma negra de senhora e se apresenta uma escrava a um senhor? É preciso respeitar a hierarquia, respeitar as patentes, Genésio.

Cleonice, que havia estendido a mão para cumprimentar a mão enluvada do “artista”, logo tomou a palavra:

-O senhor acha que tá onde? Num canal de televisão? Em alguma novela da Globo? Ou em algum “realitishô”? Aqui é Bahia, meu chapa, aqui é Salvador, mermão, num tem essa de escravo e sinhô, não. Se tu num sabe, os tempo são outro, sacou? Escravidão acabou faz mais de século!

A mulher estava enfurecida. E o Barão pasmo com a ousadia da negra.

-Criatura –disse João Maurício –sou de alta estirpe. Nasci em 1815 na Vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande! Meu pai também era João Maurício filho de Gaspar van der Ley, que veio para o Pernambuco com o Príncipe Maurício de Nassau. Privo da amizade do Senhor Imperador Dom Pedro Segundo, frequento a corte no Rio de Janeiro. Não sou um qualquer para ser tratado assim. Apesar de ser contra a escravidão, de ter assinado a Lei dosSexagenários, sou Senador do Império, mas não sou abolicionista. Tu me respeites. E trates de dizer-nos como chegar à Associação Comercial.

-Moço, olhe, eu já disse aqui pra seu capacho, que é só seguir essa rua aqui e vocês chegam lá! Manjou?

-Veja, Cleonice. Sou muito educado. Formei-me na Faculdade de Direito de Olinda, fui colega de Augusto Teixeira de Freitas e de outros luminares, como Zacharias de Góes e Vasconcelos. Não vou te responder a altura, mesmo porque não compreendo bem o que dizes. Assim sendo, dás-nos licença, pois iremos nos retirar. Tenho uma importante reunião agora para resolver um erro que estão cometendo nas minhas biografias. Assim me disseram... –O Barão fez uma pausa como se tentasse lembrar mais algum detalhe, como o fato de existir uma biografia sua se ainda estava vivo. –Bem, deixemos que lá se resolva o que eu estava indo resolver. Deu-me um branco na cabeça e já não lembro os detalhes. Vamos,Genésio.

Os dois dirigiram-se ao veículo e Cleonice ficou na calçada, mãos nas cadeiras, olhando os dois fantasiados, o Barão de cartola e casaca, botinas e polainas, bengala e luvas, um assombro para aquele clima tropical! E o pobre do Genésio de fraque preto e camisa com punho dobrado e chapéu coco na cabeça. Entraram no automóvel e nada de saírem do lugar. Ela então foi até lá.

-Por que não vão?

-Não sei como se faz para esta coisa andar! –Disse o cocheiro.

-E como chegaram aqui?

-Os cavalos nos puxavam. De repente, um estrondo e tudo mudou!

-Isto está parecendo história da carochinha. Peraí que eu vou buscar ajuda –disse Cleonice.

Ela sabia que havia um ponto de taxi bem na esquina da rua com a Praça Cayru. Caminhou até lá e pediu que um dos motoristas levasse o Barão e seu ajudante até a Associação Comercial.

-Mas eles não estão de carro? –Indagou Fidélio, o taxista que ela havia solicitado.

-Estão, mas eu acho que faltou gasolina.

-Mas você vai comigo! Eles estão com roupas estranhas...

Cleonice entrou na frente e mandou que seguisse até o carro do Barão. Fidélio deu partida no veículo, dobrou à direita e parou adiante.

-Seu Genésio –chamou Cleonice colocando a cabeça para fora da janela do taxi. –Venha, vamos levar vocês até a Associação Comercial!

Genésio saltou da “carruagem”, abriu a porta para o patrão e ambos se dirigiram ao taxi. Abriram a porta de trás e entraram.

-Bom dia! –Cumprimentou o Barão –quem é este cocheiro? Vestido assim em trajes tão sumários?

-Cocheiro? Eu sou motorista de taxi, senhor! –Respondeu Fidélio.

-Para mim é cocheiro. Tua carruagem anda sem cavalos? –Quis saber João Maurício.

-Carruagem? Isto é um carro! Um automóvel Volkswagen Polo Sedan Flex! Os cavalos que tem estão no motor! E são mais de cem!

Dito isto, Fidélio acelerou e seguiu o curso dos demais automóveis em direção à parte mais central do Comércio. O Barão e Genésio olhavam para tudo admirados.Embasbacados,sem compreender o que havia acontecido em tão breve tempo. O trânsito lento permitia que ambos admirassem as construções. O Barão então olhou para trás.

-Diga-me, senhor cocheiro, o prédio ali atrás na entrada desta rua é a Alfândega?

-Já foi, senhor. Hoje é o Mercado Modelo.

-Então tudo está por demais adulterado. E os postes de iluminação têm uma fieira de cordas! Para que serve?

-São fios de eletricidade, cabos de fibra ótica, ligações de tevê a cabo e Internet.

-Não sei de nada disso. Não entendo teu linguajar. –E dirigindo-se a Cleonice –e tu sabes de todas estas coisas que o cocheiro falou?

-Mas é claro que eu sei. Quem não sabe? O senhor quer ver?

Ela então meteu a mão na bolsa de couro verde bem escuro e tirou de lá um smartphone.

-O que é isso? –Perguntou o Barão.

-É um ismartefone. Último tipo. Minha patroa me deu no Natal passado. Então eu fico logada direto. Sempre que ela precisa, me manda mensagem pelo zap.

-Nada entendo o que tu falas –queixou-se o Barão –mas dizei-me, já que tu falaste que estamos na Bahia, e nisso eu acredito, em que ano estamos?

-Ôxe? O senhor andou tomando champa no café da manhã no Hotel Fera ou no Fasano?

-Cleonice, limite-se a responder o que te pergunto. Não sei nada destas coisas que estás a dizer. Em que ano estamos?

-Tamo em 2019!

As feições do Barão recrudesceram enquanto as de Genésio eram de puro pânico. As mãos de ambos crisparam-se no assento do carro, olhos arregalados, medo, pavor.

-Então –disse o Barão olhando fixamente para Genésio –isto quer dizer que morremos. Já sei, foi na curva que fizeste ao descer a Ladeira da Conceição. Bem pressenti algo diferente. Morremos, Genésio, é o fim, acabou-se.

Ao ouvir o dito do Barão, Cleonice deu um berro e Fidélio freou o carro abruptamente.

-Que doideira é esta de vocês todos? –Indagou o motorista. –Aqui não tem ninguém morto, não!

Feito isto ele ligou o rádio, que estava sintonizado na Educadora FM 107.5 khz. A música, num som alto, locupletou o ambiente. Era uma versão orquestrada da Marselhesa. O Barão pareceu acalmar-se. Encostou-se de volta no banco e retirou a cartola. Era um homem meio calvo e magro, nem alto nem muito baixo.

-Conheço esta canção! –Disse ele.

-Eu não! –Respondeu Cleonice.

-Como não? É a Marselhesa! O hino da França desde 1795. Cantamos em todas as escolas do Brasil no dia quatorze de julho! Uma homenagem ao povo gaulês, embora para nós, monarquistas, seja de muito mau augúrio. Não queremos nada com este tipo espúrio de governo, a tal da república!

Já de smartphone na mão, Cleonice acessou o Google.

Digitou “Barão de Cotegipe” e, ao aparecerem as informações, ela pôs o dedo sobre “imagens”. Então foi a vez dela arregalar os olhos.

-Fidélio, olhe pra isso! –Disse ela, mostrando a tela grande do aparelho ao motorista. –É ele mermo, o Barão de Cotegipe.

Fidélio olhou a tela iluminada e conferiu no retrovisor.

-É, é ele mesmo, mas pode ser algum ator, que a produção procurou bem assemelhado. Quem pode dizer que é ele próprio? Aí diz quando foi que ele nasceu?

-Vou tirar isto a limpo, é agora! –Sussurrou Cleonice.

-Seu Barão, o senhor nasceu em qual data?

-23 de outubro de 1815, já te disse que foi na Vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande, no Pernambuco!

-É, a data tá certa, confere. Mas o lugar diz que é Barra do Rio Grande. E Barra do Rio Grande é Bahia.

-Com certeza reduziram o nome da Vila. Mas não podem ter mudado a província –replicou o Barão.

-Vou ver em outro saite –disse Cleonice.

-Outro o quê?

-Saite, ora, o senhor não sabe o que é saite?

-Nunca ouvi tal palavra.

-É porque é inglês! –Informou Fidélio.

-E o que quer dizer? –Quis saber o Barão.

-Não sei. Mas é um sítio eletrônico na rede mundial de computadores. Todas as empresas,órgãos públicos e privados, atualmente têm saites. O Google é um saite informativo. Já o Uber é um aplicativo –ensinou o motorista, conhecedor das coisas do seu mundo.

Cleonice então disse:

-Olhei agora no saite do Instituto Histórico. Humm...aqui diz que o senhor nasceu na Barra do São Francisco!

-Barra do São Francisco? Isto é um horror! A barra do São Francisco é entre as províncias de Alagoas e Sergipe. A minha vila de nascimento, onde a minha mãe, Francisca Antônia Correa deu à luz, é às margens do Rio Grande, que é afluente do Rio São Francisco. Nada tem a ver com o delta, a foz, a barra do grande Rio. Ô gente ignorante. Por isto estou aqui! Para corrigir tais erros.

-Vou ver em outro saite.. –disse Cleonice.

-Pois veja!

A viagem de carro já estava chegando ao fim. O Barão, admirado com a pavimentação das ruas, apreciava o mundaréu de gente caminhando nas calçadas.

-O que é aquilo colorido que acende e apaga lá no alto? –Indagou ele apontando para um semáforo.

-É uma sinaleira, senhor! –Informou Fidélio. –O vermelho é para parar o trânsito, o amarelo é atenção e o verde para seguir.

-Que coisa curiosa!

O carro andou mais alguns metros e chegou em frente ao prédio majestoso da Associação Comercial.

-Mas aqui é o Palácio do Conde dos Arcos! –Exclamou o Barão.

-Hoje é a sede da Associação Comercial! –Respondeu Fidélio.

-Onde estão os tamarindeiros?

-Barão, foram retirados há muito tempo! Esta é a Praça Conde dos Arcos! –Informou Fidélio.

-Como assim! Esta é a Praça do Comércio! –Reagiu o Barão. E virando-se em direção à Baía de Todos-os-Santos, exclamou: –E que prédios enormes são aqueles acolá?

-O maior é o Banco do Brasil e o vizinho é o Edifício Abelardo Gomes Parente, sede do Bradesco.

-E aquele mais adiante?

-Todos são prédios comerciais. E o mar da baía, onde foi parar?

-Está atrás do Banco do Brasil. Ali há uma grande avenida de pista dupla, chama-se Avenida da França. É onde ficam os armazéns do Cais do Porto. Onde chegam os transatlânticos, os grandes cruzeiros, que vêm do mundo todo.

Foi a vez de Cleonice interromper:

-Senhor Barão, deixe eu lhe dizer uma coisa: esse lugar de nascimento do senhor está meio errado. O saite do Senado também diz Barra do São Francisco! O senhor é maçom?

-Esta é uma das respostas que não se dá a uma pessoa estranha!

-Se o senhor é ou não é, não vem ao caso. Mas lá também está dizendo que o lugar de nascimento do senhor é Barra do São Francisco.

-Que absurdo! –Contestou o Barão. –Tomarei imediatas providências ainda hoje na reunião que terei na Associação Comercial . Irei queixar-me ao Primeiro Ministro, o Marquês de Olinda para que tome as devidas providências. Genésio, vamos!

O cocheiro do Barão saltou do carro, arrodeou e abriu a porta para o Doutor João Maurício, que desceu e imediatamente colocou a cartola. Cleonice também saltou.

-Quem vai pagar a corrida? –Indagou Fidélio.

-Devia de esse aí –respondeu ela –mas ele não deve de

dinheiro.

Então ela pegou dez reais na bolsa e pagou ao motorista. E o Barão, sentindo-se humilhado, pegou uma moeda de prata de 500 réis no bolso da casaca e a passou para Fidélio.

-Era só o que faltava! Uma negra pagar por mim! –Pensou o Barão. Sempre observando tudo ao redor, o Barão arrodeou o prédio e encaminhou-se para a escadaria na frente do palácio seguido por Genésio e Cleonice. Subiram os degraus de mármore desgastados e, do alto, o Barão virou-se e olhou a Praça Riachuelo e o monumento à batalha da guerra do Paraguai.

-Tudo muito diferente, não conhecia este monumento, além do que parece que aterraram as água da baía para fazerem tais construções! Devem ser uns irresponsáveis! –Comentou João Maurício.

Dirigiram-se ao interior do prédio. O recepcionista, vendo chegarem aquelas figuras exóticas, saiu de trás do balcão e se dirigiu ao grupo.

-Bom dia, senhores. Em que posso lhes ajudar?

-Sou João Maurício Wanderley, Barão de Cotegipe. Vim para uma sessão solene no Salão Nobre deste Palácio do Conde dos Arcos.

-Senhor, que eu saiba, não há sessão na data de hoje.

-Podes verificar, por favor?

O rapaz, entre desconfiado e assombrado, girou nos calcanhares e dirigiu-se ao grande salão. De fora, ele ouviu o sussurrar de vozes vindo do interior do salão –que coisa! Ninguém passou por mim até agora. Como essa gente toda entrou aí? –Ato contínuo, abriu a porta de folha dupla e vidro jateado. O salão estava repleto de homens. Alguns vestidos como estes dois que chegaram, outros de paletó e gravata, outros até de calça jeans e manga de camisa. O rapaz virou-se para o Barão e seus acompanhantes e, pasmo, mandou que entrassem.

-Só eu vou entrar! –Exclamou o Barão. –O assunto só interessa a mim!

-Mas o senhor não vai falar dos saites que estão informando seu lugar de nascimento errado, Barão? –Perguntou a espevitada Cleonice.

-Óbvio que vou! É o assunto principal desta reunião. Afinal, deve ter sido para isso que vim aqui!

-Então o sinhô pode precisá de mim e de meu ismartefone.

-Então, siga-me! E tu, Genésio, aguarde-me aqui fora.

Assim que a presença do Barão foi notada pelos presentes, fez-se um abrupto silêncio –seria por sua pessoa ou pela inconveniente presença de Cleonice ali naquele salão de cerimônias? –Perguntou-se o Barão. João Maurício retirou solenemente a cartola e se encaminhou, sempre seguido por Cleonice, para a cabeceira da grande mesa ocupada por Eduardo Moraes de Castro que,naquela ocasião, substituía o presidente da Associação, Adary Oliveira. O Barão conhecia poucas daquelas pessoas, mas reconhecia as de seu tempo, todas vestidas a caráter como ele. Manoel Pinto de Souza Dantas, seu colega no Senado do Império e presidente do Conselho de Ministros, cargo que lhe conferia o status de Primeiro Ministro de Dom Pedro; Doutor Raimundo Nina Rodrigues, médico psiquiatra; Doutor Ruy Barbosa, político abolicionista erepublicano –um terrível! –Pensou o Barão terminando de passar a vista entre os demais. Adiante, o Comendador Bernardo Catharino e o senhor Luiz Tarquínio, industriais; Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha, político e magistrado, e Augusto Teixeira de Freitas, jurisconsulto do Império e colega do Barão na Faculdade de Direito de Olinda.

A um lado, em pé, estavam três cavalheiros, estranhos a seus olhos: dois deles estavam de calça jeans, botas de couro e camisa quadriculada. O mais velho ostentava um belo par de suíças. Outro mais jovem e um terceiro mais esquisito ainda, alourado e barbado, bem jovem, usava uma roupa branca. Foi ao homem com aparência de mais velho que o Barão se dirigiu depois de cumprimentar os presentes com um sonoro bom dia e recomendando que todos tomassem assentos. Atrás desses três estavam o médico Doutor Aécio Meirelles de Souza Dantas e seu filho de mesmo nome, além de José Martins Junior, os mais jovens vestidos como o de suíças eo mais velho com um guarda pó de médico de mangas compridas, longo até os tornozelos. Representavam o município de Barra do Rio Grande.

-Senhores, incumbi-me de vir aqui solicitar a correção de vários erros biográficos. Não apenas relacionados a mim como a outra personalidade aqui presente. Para isso, conto com o prestígio dos senhores. Não vos conheço a todos, mas quero dirigir-me ao preclaro senhor calvo e de suíças. Vós podeis vos apresentar, por obséquio!

-Barão, devo ser parente do senhor. Temos o mesmo sobrenome, originário de Pernambuco. Sou Marcus Vinícius de Barros Wanderley, lá do Arraial de Nossa Senhora dos Prazeres do Assú, pras bandas de Sirinhaém, descendente de Gaspar...

-Sei de quem sou descendente. Não é necessário contar-me a minha própria história. Mas por que o senhor está aqui?

-Certamente para ajudar a elucidar e esclarecer os erros de sua biografia, Barão.

-E estes dois aí ao vosso lado, poderiam se apresentar?

O louro aproveitou a deixa:

-Sou Douglas van der Ley, de Recife, sou chef du cuisine e ainda escrevo o meu sobrenome da maneira original. Também sou parente do senhor.

-E que trajes são estes?

-Isto é uma dolmã, senhor. Eu estava trabalhando na cozinha quando requisitaram a minha presença.

O outro tomou a palavra:

-Sou José Enéas Vasconcelos Wanderley e descendo do mesmo ramo da família que o senhor. Também moro em Recife e sou criador de cavalos.

-Por que estão aqui? Parecem destoar dos demais –insinuou o Barão.

-Barão –disse Marcos Wanderley –eu já estou no mesmo plano do senhor. Mas estes dois estão aqui[,] porque estando vivos e tendo conhecimento, farão as solicitações de correção dos erros biográficos do senhor.

-Sabem que erros são estes?

-Na verdade, o mais brabo é informar que o senhor nasceu na barra do São Francisco. É um erro grosseiro, que está em várias biografias do senhor, principalmente as que estão publicadas na internet. O site do senado está errado embora osenhor seja senador, o do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, também, assim como o da Maçonaria.

-Realmente, é um absurdo! –Exclamou o barão. –E estes três senhores aí ao vosso lado?

O mais velho, Doutor Aécio, tomou a palavra:

-Sou médico na Vila de São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande. Estes aqui ao meu lado são meu filho e seu amigo, eles que reivindicarão à Prefeitura da Barra através do Prefeito Deonísio a correção da vossa biografia nos órgãos que estão divulgando errado. Isto porque, tal qual o companheiro aqui ao lado, eu também já mudei de plano!

-Muito bem. E diga-me, Doutor Aécio, aqui está o Senhor Manoel Pinto de Souza Dantas, meu confrade no Senado do Império. Vós o conheceis?

-Apenas de nome, Barão. Mas devemos ser parentes. Os Souza Dantas são uma só família.

Foi quando um senhor de grande cabeça e vasto bigode pediu a palavra. Era o Bacharel Ruy Barbosa de Oliveira:

-Senhores, também me encontro aqui nesta tertúlia para reivindicar algo muito sério, que nodoa meus mais primitivos e íntimos brios.Como sabem vossas excelências aqui presentes, escravagistas e monarquistas ou abolicionistas ou republicanos, meu nome próprio é e sempre será grafado com a letra ipsilon. Não admito, sob quaisquer circunstâncias, que escrevam meu nome de outra forma. Imaginem vossas excelências, que até uma fundação que criaram em minha homenagem coloca em seu material de divulgação o meu nome grafado errado! Cáspite! Não aceito tal vilipêndio! Fui batizado e registrado tendo o nome escrito com ipsilon e vêm estes modernos detratores desconhecer estas efemérides! Querem a degradação do meu nome e da minha pessoa?

-Doutor Ruy –disse Eduardo Moraes de Castro. –Sou atualmente Presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e sou amigo do Presidente da Associação de Letras da Bahia, Doutor Joaci Goés. Vou me encarregar pessoalmente de mandar corrigir o nome do senhor em todos os órgãos onde estiver errado. Pode descansar em paz,que será uma missão que desempenharei como forma de justiça e respeito ao nome do senhor.

-Muito vos agradeço, meu caro. Estarei sempre às vossas ordens.

Foi quando um senhor que até aquele momento tinha passado despercebido, caminhou lentamente até o centro da sala e suavemente bateu palmas. Era alto, muito claro, tinha os cabelos bem penteados e escuros. Usava um terno creme, camisa branca e gravata. Tinha uma natural aura de paz e sossego, e uma voz cativante, como se constataria quando ele principiou a falar:

-Senhores, chamo-me Divaldo Franco e sou o responsável direto por tê-los reunido aqui nesta ocasião, atendendo às reivindicações do Barão e do Doutor Ruy.

Cleonice, que até o momento havia se mantido quieta e calada, limitando-se a arregalar os olhos ao ouvir as preleções, resolveu abrir a boca:

-Conheço o senhor! É da Mansão do Caminho da Redenção, ? O senhor é uma pessoa muito caridosa, todo mundo aqui na Bahia lhe conhece e admira!

-Isto mesmo, minha filha –respondeu Divaldo –mas esta agora é uma nova missão, que foi passada aos presentes aqui neste egrégio salão. Já percebi que tudo está terminando a contento, então vamos nos retirar, em silêncio obsequioso, cada qual a seu destino. Obrigado a todos.

O Barão de Cotegipe obedeceu placidamente, assim como os que estavam ali, vindos de outras dimensões. Apenas os que resolveriam os pleitos do Barão e de Ruy Barbosa, além de Divaldo e Cleonice, permaneceram mais um pouco no grande salão, cumprimentando-se e despedindo-se enquanto enalteciam a iniciativa de um pesquisador anônimo, que pedira a Divaldo que resolvesse o assunto corrigindo os erros e as injustiças.


 
 
 

Comments


Assine e receba novidades dos lançamentos de Ticiano Leony

Ticiano Leony 

Av. do Farol, 2408 Praia do Forte CEP 48.287-000 Mata de São João, BA

Prazo para entrega: Até 15 dias

Email: teleony@gmail.com 

bottom of page