top of page

O menino e o jumento

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 28 de dez. de 2020
  • 10 min de leitura

Atualizado: 6 de jan. de 2021

Excerto de Baraqueçaba - Casos do Acaso, Ticiano Leony, Ed. Caramurê, 2014


O menino e o jumento

Ticiano Leony

Cidades da Bahia, de décadas passadas, pouca gente se lembra como eram. As vilas onde moravam os burgueses, o médico que receitava em casa, geralmente numa sala da frente da casa de morada que desse para rua ou para um alpendre, o vigário que morava na casa ao lado da igreja e sua paróquia, o juiz, o prefeito, o delegado, enfim toda a fauna da urbe, passando pelas professoras, pelo farmacêutico, pelo dentista e naturalmente pelos demais habitantes, o padeiro, os donos dos bares e botecos, os vendeiros, comerciantes, prostitutas e cafetinas. Todos ocupavam seu lugar distinto respeitando o fato de que “cada macaco no seu galho”.

Em volta das cidades moravam os sitiantes, os oleiros, os ferreiros e mais distante um pouco, os fazendeiros. Estes habitantes da zona rural tratavam de abastecer as vilas com seus produtos pecuários e agrícolas. O leite, a manteiga, o requeijão, o mel, a carne de porco e de boi, as galinhas, os ovos e os frangos, o tomate, a batata, o milho, o aipim, a mandioca transformada em farinha, beiju e goma.

Para que a vila progredisse e sobrevivesse, no entanto, carecia de energia. Nestes bizarros tempos de antanho, além da energia do sol e da água dos rios, restava apenas a nossa heroína desta estória incomum: a lenha. Com ela se fazia de um, tudo: além de cozinhar nas casas, aquecia-se a água do banho no inverno, fazia-se o pão, queimava-se os tijolos e as telhas para construir as casas e as lajotas de barro para revestir os pisos das moradias. O ferreiro esquentava a forja para afiar as ferramentas e os tanoeiros a usavam para escaldar os couros e processar a sola. Nada se fazia sem a lenha. Os de maior posse queimavam querosene para iluminar as casas, os mais pobres queimavam óleo em rudimentares lamparinas. Porém, na hora de cozinhar, todos eram socialmente iguais, fosse em luzidios fogões esmaltados ou em toscos fogões de barro, a lenha era o combustível indispensável a abastados e proletários.

Em volta das vilas a lenha escasseava, reduzida pelo fogo a cinza e pó, no afã dos sitiantes em transformar suas vidas, plantando mais, criando mais. Plantar cultura ou pasto significava melhor situação, maior posição social. A lenha então se distanciava das vilas e, por força do transporte, ficava mais cara dia após dia.

Com a vila de Jaqueira a situação não era diferente. Às margens do fabuloso Rio Gongogi, de águas negras e profundas, tentava florescer aquele comércio, ainda longe, quase inalcançável da sede da comarca de Poções. O nome da fazenda não vem ao caso nesta história e o nome do Coronel também é irrelevante.

Um certo dia, montado em sua melhor mula, arreada com a melhor sela de coxim, em cromo debruada de branco como convinha a um coronel daquela antiga estirpe, sela feita de encomenda por Edésio, as fivelas de alpaca forjadas por Genésio Teixeira polidas com areia e cinzas, vistoriava seus novos pastos o senhor daquelas terras de Jaqueira, há muito sediado em quase uma sesmaria que herdara de seu avô com carta do tempo do Império. Dando-lhe guarida e proteção, acompanhava-o no passo vagaroso de outra mula, o capataz, homem valente como carecia àquela época um coronel, porém homem justo e trabalhador, acostumado com as lides do gado e do campo.

De repente, no meio do colonião viçoso, ainda boca de estribo depois da queimada recente, seguida das abundantes chuvas de verão, avistaram um menino. A idade parecia ser ainda tenra, os trajes maltrapilhos, cabelos desgrenhados, um imundo, o pobre coitado.

-Saia da toca! –Gritou o coronel brandindo casualmente a curvelana, pois que não tencionava atingir aquela criatura com seu chicote. –Saia, e se não ‘tiver fazendo nada de mal, nada tem a temer!!!

Acabrunhado, cabisbaixo, parecendo ainda menor do que realmente era, saiu do meio da touceira de capim molhado do orvalho da madrugada, aquele espécime de gente. A queimada havia deixado os gravetos de madeira de lei sem carbonizar totalmente e estes serviam como lápis de negro carvão a riscar a pele clara do menino.

O diálogo surrealista que se sucedeu, surpreendeu o capataz.

-Menino, que é que você está fazendo aqui, uma hora destas da manhã? Não devia era estar na escola? –perguntou o Coronel.

-Coroné... –balbuciou temeroso e hesitante o menino, com voz tão baixa que o capataz ordenou:

-Responda ao Coronel, moleque! Que nada lhe acontece, ele num já garantiu, ora!!??

-Coroné..., eu cato graveto que é pro mode os povo fazê lenha, é galho esturricado de itapicuru, dá boa lenha e eu posso deixá meus irmão ir p’ra escola em Jaqueira, sem mãe tê qui lavá mais roupa nas pedra do rio. Eu troco a lenha do itapicuru com seu Heraldo da padaria e com Bento oleiro. Heraldo me dá pão e o troco dá p’ra comprá farinha e seu Bento dá tijolo qui eu vendo e compro roupa p’ros irmão. E tamém vendo a lenho p’ro seu Reginaldo qui é p’ra escardá couro e ele me paga cum carne de boi toda feira...

Estabelecido o diálogo, para espanto do capataz, o Coronel perguntou com seu vozeirão acostumado a mandar e ser obedecido:

-...E você leva essa lenha p’ra Jaqueira, como? –quis saber o Coronel, já achando que iria lograr o menino numa mentira.

-Levo nas costa... –disse o menino sem titubear. –Faço as ruma em casa, de segunda a quinta, e sexta entrego as encomenda. Num farta lenha p’ra ninguém.

O Coronel passou a mão no chapéu, expôs ao sol sua luzidia calva, esfregou a testa com as costas da mão e olhando para o capataz, decretou:

-Quando a gente chegar na sede, arranje um jumento ainda forte, manso e pequeno, bote uma daquelas cangalhas que já não servem para o cacau, arreie com cabresto de sola e corda de sisal, que este pedaço de gente vai lá buscar amanhã cedo!! Você ouviu, menino?? Amanhã cedo vá lá na sede pegar seu jumento, que pelo menos de hoje em diante você não vai mais carregar lenha nas costas.

A ordem, bem compreendida, foi um espanto para o capataz e para o menino foi uma bênção de Deus. E diziam, pensava ele, que o Coroné era isto e aquilo, que matava e mandava matar, que dava sumiço em gente e surra em trabalhador. Tudo mentira, vejam só... O Coroné é um pai, um enviado de Deus, d’agora em diante é Deus no céu e o Coroné na terra.

Os tempos se passaram. O Coronel havia mandado os filhos estudarem fora. Um para a Capital do Estado, outro para a Capital da República. As outras duas se casaram e foram embora com os maridos para longínquos estados no Norte e no Sul do País. Deste modo o Coronel tinha filhos nos quatro cantos do Brasil, todos a fazerem despesas enormes, os genros a pedirem dinheiro emprestado que nunca pagavam, as filhas a cobrarem presentes disto e daquilo, os filhos querendo sempre terno novo, último tipo, viagens para o exterior, namoros, gastos diversos. Toda despesa para ser sustentada pelo duro trabalho do Coronel.

O Coronel vendia cacau, mandava dinheiro para um. Vendia boi, lá ia o dinheiro para outro. Os estudos não acabavam mais. Um estava na Faculdade, outro fazia pós-graduação, as filhas inventavam despesas com a chegada de netos e netas. A despesa aumentava e o Coronel via suas rendas diminuírem. Não tinha dinheiro que chegasse.

Como não gostava de se ver com pouco dinheiro, resolveu aumentar o caixa vendendo um pedaço da fazenda. –Para que tanta terra? –Perguntava ao Capataz e a outros confidentes. –O importante é manter os meninos nos estudos, as meninas no conforto. Não quero que lhes falte nada! –Ordenava ao mandar vender mais um lote de vacas.

Os anos passavam e os filhos não voltavam. Nem para ver o Coronel, nem a fazenda, nem a mãe deles que vivia chorando pelos cantos. Escreviam, era verdade, notícia não faltava, mas agora já era hora de vender outro pedaço de terra, porque um dos filhos resolvera casar. Negócio assim meio de repente, meio na pressa, mas qual era o jeito? Se desrespeitou a filha dos outros, tem que casar!

Finalmente o último casou. Com todos casados, começaram a pesar nas despesas os resultados da procriação. Os filhos nunca tinham dinheiro, nunca tinham trabalho, aquele estudo todo parecia um faz de conta. Nesta ocasião, dizem que por desgosto, o Coronel ficou viúvo. Sua companheira de tantos e tantos anos se desiludira com os filhos e morrera de desalento. Sozinho, o Coronel acabou por vender o último pedaço da fazenda, justamente o mais perto da Vila. Quem ficou com a terra, ele nem conhecia bem, foi um comprador de cacau estabelecido em Jaqueira e que sempre lhe fornecera dinheiro adiantado, mesmo quando não tinha o cacau para entregar. Sua antiga posição ainda inspirava confiança naqueles aventureiros, julgava o Coronel.

O progresso já estava ali. Havia estrada de rodagem e o cacau não precisava mais descer o rio nos canoões para Pedrinhas de onde ia em lombo de burro, para o Pontal do Gongogi e de lá pelo Rio de Contas nos batelões para Poery onde embarcava de trem para Ilhéus. Agora ia de caminhão. Também chegou a luz elétrica de gerador e o esmaltado fogão econômico que gastava pouquíssima lenha.

Os dias espreguiçavam-se e demoravam a passar. Não tinha aonde ir. Viúvo, não tinha sequer notícia dos filhos ingratos que lhe sugaram toda aquela outrora imensa fortuna. Dos netos, não sabia nome ou paradeiro. Já não tinha nada mais para fazer ali, nem um vintém no bolso.

Naquela sexta-feira acordara cedo, na rompença do dia, e olhando do fundo da casa o rio que languidamente se espreguiçava em seu leito, com os reflexos das primeiras luzes da manhã, pensou casualmente que apesar de não possuir mais terra, nem gado ou cacau, que nunca lhe faltara nada. Nunca tinha tido uma pequena necessidade que fosse, a mais leve das leves fomes. –Quem lhe provinha? –Pensou inquieto. –Quem estaria por aqueles anos todos a lhe dar o que nem os filhos tiveram o cuidado? O que qualquer filho teria a preocupação de prover para retribuir o sacrifício imenso que fizera por toda a vida? Até a velha Donana, já quase tão velha quanto ele, continuava a servi-lo, a chegar em casa com as compras, o pão de Everaldo, a carne de Cinho, filho de Reginaldo, o remédio para as dores da velhice, tudo tinha, vindo não sabia de onde.

Encabulado, arrastou-se até o banheiro no corredor aberto ao fundo da casa sempre limpa e asseada, fez as necessidades matinais, lavou a boca, molhou fartamente com água fria o rosto vincado e o resto dos cabelos brancos, voltou ao quarto, trocou de roupa e agora dia claro, pôs-se a esperar Donana que logo chegaria com a cesta de pão quente para o café da manhã. Não tardou, a porta rangeu e a figura pequena e esmirrada de Donana atravessou o umbral. Ele, da cadeira de balanço, como sempre fizera, chamou:

-Donana! Bom dia e chegue aqui!!!

Logo ela estava ao lado do velho Coronel, que apesar de sofrido, mantinha a altivez de outrora.

-Donana, quem é que por todos estes anos vem me mantendo? Mandando do pão ao requeijão, a carne, o leite, os ovos, quem é que está me mandando dinheiro p’ra vosmecê comprar pano e fazer minhas roupas? Me responda, Donana, qu’eu estou encabulado de morrer!!! É qual o filho meu que depois de tantos anos resolveu me recompensar?

Donana mantinha-se respeitosa como sempre. E olhando para o chão muito vermelho da cera Cardeal, o cimento polido que ela zelava com gosto, disse ao Coronel:

-Coroné, vosmecê tem sido amparado pela mesma pessoa faz quase quinze anos. Nunca fartou nada nesta casa, e agora, de repente, como se uma luz aparecesse do nada nesta cabeça de vosmecê, dá vosmecê de querê sabê quem é seu benfeitor? Mió ficá na ignorância agora, Coroné, que a ignorância é uma virtude. Saber p’ra que? Não é nenhum filho de vosmecê, que nenhum nunca deu bola ao Coroné, só chegava carta enquanto teve dinheiro e bens p’ra pedir....depois, só esquecimento. Sabê p’ra quê?????”

Mas o Coronel insistiu, deu ares de bravo, fez como no tempo que tinha riqueza e poder. Levantou-se, andou de um lado para o outro, rodou nos calcanhares e decretou:

-Donana, eu não sou, nem fui rapariga p’ra ser sustentado por outro. Seja lá quem for eu preciso saber. Já tenho mais de noventanos e nada mais me assusta ou amedronta. Não me surpreendo com nadinha mesmo, então porque não saber??”

Donana virou-se e brandamente falou:

-Eu vou buscá o home. Se ele estiver aí, se não tiver ido p’ra fazenda, eu trago ele, aí vosmecê fica logo sabendo quem é seu benfeitor.

O dia já ia claro e era forte o sol da manhã. O Coronel estava com um vazio na barriga, mas não era de fome, não. Era de ansiedade para saber que surpresa ele teria naquele dia. Tentou adivinhar quem seria o incógnito provedor: seria o prefeito, em busca de votos? Mas ele não votava, nem nunca se metera em política. Não tinha um voto na cidade, a não ser o dele próprio. Talvez uma Casa de Caridade. Mas Casa de Caridade não manda comida todo dia, ainda mais para um sujeito apenas, por tanto tempo e ainda sem pedir nada em troca! Ah! Com certeza era o padre. Aquele padre jovenzinho...Como é mesmo o nome dele? Ora, mas o padreco está em Jaqueira há tão pouco tempo, nem deve conhecer o Coronel e a ajuda é mais antiga que a chegada do padre. Padre Pedro, lembrou, é o nome dele, mas nem conhecer, conheço...

A porta rangeu de novo e Donana entrou.

Não estava só. Com ela vinha um sujeito magro e alto, com um chapéu na mão. Não era tão alto, era a pequenina estatura de Donana que fazia qualquer um parecer alto. Não tinha um fio de cabelo sequer, mas ainda era jovem, avaliou o Coronel, entre trinta e cinco e quarenta anos.

O homem chegou perto, o Coronel mandou sentar. Ambos se sentaram. O Coronel na cadeira de balanço, o homem na cadeira de lona. O Coronel ficou um tempo perdido em pensamentos, absorto, focalizando alocubrações de uma mente estacionada no tempo, buscando lembranças já há muito esquecidas. Nada. Nada. Vasculhou os quatro cantos da memória em busca de uma fisionomia, de um traço familiar, de uma aparência. Nada.

Sem resistir mais ao silêncio, indagou:

-Quem é o senhor? Qual o seu nome?

Buscando as palavras certas, o estranho respondeu, calma e suavemente:

-Meu nome é Julião e eu sou comerciante aqui em Silva Pereira.

A vila de Jaqueira já era cidade e mudara de nome.

O Coronel continuava sem saber de nada. Insistiu:

-É o senhor que me manda a feira, os mantimentos, tudo que vem me sustentando há muito tempo. Quem é o senhor afinal, porque faz isto?

Julião escolheu bem o que iria dizer. Limpou a garganta e concluiu:

-Coronel, eu sou o menino do jumento. Quando eu estava começando a vida, o senhor me encontrou numa manga de sua fazenda e mandou o capataz do senhor me dar um jumento. Com ele, Coronel, fiz a vida, vendi lenha, negociei com farinha, cachaça e depois cacau, ganhei dinheiro e hoje sou o dono de todas as suas terras. Se sustento o senhor, não é por obrigação, mas por gratidão e se dependesse de mim, o senhor nunca precisaria saber da minha existência, porque para mim, abaixo de Deus, continua existindo apenas o senhor.

O Coronel se levantou e com o lampejo da lembrança diante dos olhos cheios de lágrimas, abraçou o menino do jumento.


 
 
 

Comments


Assine e receba novidades dos lançamentos de Ticiano Leony

Ticiano Leony 

Av. do Farol, 2408 Praia do Forte CEP 48.287-000 Mata de São João, BA

Prazo para entrega: Até 15 dias

Email: teleony@gmail.com 

bottom of page