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Fidelidade

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 11 de fev. de 2021
  • 3 min de leitura

​​​​Fidelidade

​​​​​​​Ticiano Leony

​​​​​​​​

Para Filó

​Quando, em 1985 me dirigi com minha noiva, atual esposa, à sacristia da Igreja de Nossa Senhora de Santana, para ter um “particular” com José Gilberto Luna, o Padre Luna, não imaginava o alcance do que teria o que fomos ali tratar com ele.

​Eu já havia casado uma vez e houvera ficado viúvo ainda muito jovem. Tinha uma noiva com quem tencionava casar. E a Igreja nos solicitava um atestado de um certo “Curso de Noivos”. Padre Luna nos acolheu com toda a amabilidade que lhe era peculiar, não apenas por conhecer sobejamente a minha família por três gerações, como pela fraternal amizade que nos unia. Padre Luna era meu amigo e poderia dispensar-nos do curso para sair do celibato.

​Tanto que, com sua especial benevolência e até graça, aceitou conversar para saber a razão de eu julgar-me acima do tal curso. No decorrer da conversa animada, eu lhe perguntei se já fora casado.

-Com a Santa Madre Igreja! –Respondeu ele austero, com uma ponta de grandeza, olhando por cima dos óculos.

-Não é a mesma coisa! –Repliquei. –Tenho mais experiência com casamentos e relacionamentos do que quem pretende ministrar o curso.

​Depois de um bate-papo para lá de filosófico, contrabalançado por argumentações epistolares e ecumênicas, finalmente ele acedeu. Prometeu-nos e cumpriu, liberando-nos do curso, inclusive com passagens interessantes, quando ele disse que eu já havia casado, mas a noiva não! Era solteiríssima. E eu respondi que eu mesmo me encarregaria de dar as aulas do curso a ela, não apenas na teoria como na prática.

​Uma vez acordados, eu lhe pedi que, durante a celebração do casamento, quando os noivos fazem as promessas, que ele substituísse o termo “fiel” por “leal”. Disse-lhe que o ser humano, uma vez que é racional, tem obrigação de ser “leal”, característica de quem tem tino, raciocínio, livre arbítrio. Defendi a tese de que “fiel” cabe ao irracional, ao subserviente, ao comandado, como obedecer fielmente seja ação indesejável num casamento entre dois seres pensantes.

​Padre Luna, parou, raciocinou, coçou a cabeça e disse:

-Eu não tenho como modificar a liturgia da consagração do matrimônio. Tem mesmoque ser “fiel”!

​Saímos de lá meio decepcionados, mas agradecidos por termos sido dispensados do bendito curso que, pelo menos eu, já fizera antes do meu primeiro casamento.

​Qual não foi a nossa surpresa, quando no dia da cerimônia, durante a homilia, ele falou principalmente em “lealdade”, mencionando inclusive a conversa da sacristia de Santana. Foi um sucesso!

​Trinta e cinco anos depois, numa tarde de fim de verão, compreendi a razão da Igreja usar “fidelidade” em vez de “lealdade”.

Precisamos sacrificar nosso animal de verdadeira estimação, uma cadela Chow-chow de quatorze anos de idade, acometida de alguma doença que a fazia não conseguir levantar-se e chorar com dores intensas.

Sob a sombra do cajueiro, em meio ao cantar dos pássaros e ao barulho inquieto de vários micos que parecia terem vindo se despedir, enquanto a brisa fresca da tarde balançava as folhas e os pelos longos deFiló, precisamos dizer adeus àquela que foi a mais presente e fiel companheira que minha família já teve.

​O técnico aplicou-lhe um anestésico e depois o líquido que paralisou seu imenso coração. Ficamos todos enternecidos, tocados, chorosos até a vista enevoar-se, enquanto víamos o brilho dos olhos de Filó se perder na bruma. Então compreendi, como se fora fulminado por um raio cósmico, o sentido da fidelidade como preconiza a liturgia do casamento.

​Nós, seres humanos, creio que principalmente os brasileiros, achamos que “fidelidade” no casamento é apenas e tão somente não trair o cônjuge, do ponto de vista físico, carnal. Nossa pequenez nos faz pensar assim, esquecendo as ideias que os casais compartilham, os segredos, as minudências, as filigranas. Só que não é tão simples. Ter um “caso” paralelamente ao casamento, não é como ter um novo amigo fora da amizade. Isto não é contra o sentido da fidelidade, isto é traição. Traição é uma rasteira que se dá no próximo, é derrubar o outro, colocar o parceiro em nocaute e pisar-lhe o pescoço. Claro que ser desleal também é traição, mas a fidelidade tem a ver com olhar, com sentimento, com conhecimento profundo da alma do outro, com o pensamento. Quem nesta vida teve ou tem uma Filó com aquele seu olhar, sabe compreender bem o que é fidelidade. Tanto que não é surpreendente quando alguém se refere ao máximo da fidelidade: a fidelidade canina.

​Depois que precisamos sacrificar Filó para que ela parasse de sofrer, compreendi que a fidelidade transcende a racionalidade do ser humano. Quem é consciente e não trai, está sendo leal. Quem não trai cegamente é fiel.


 
 
 

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