Molecagem
- Ticiano Leony
- 18 de mai. de 2021
- 6 min de leitura
Molecagem
Ticiano Leony

Desde meninos os dois primos eram a essência da molecagem. Nunca foram malandros, de jeito algum. Eram mesmo, de fato, uma dupla de incorrigíveis traquinas. Foram dois meninos traquinas, dois adolescentes arteiros capazes de pregar peças inimagináveis nas outras pessoas e se tornaram adultos galhofeiros, embora pais e avós de família.
Quando os dois estavam juntos, a confusão não era maior porque um morava na Bahia e o outro em São Paulo. Mas quando se juntavam, num Estado ou no outro, a molecagem estava garantida. Era como se os dois juntos tivessem a capacidade de atrair malfeitos. Sofriam, de parte aparte a reprimenda das esposas e até repreensão dos filhos, algumas vezes vítimas das ditas “brincadeiras de mau gosto”!
Mas, já passados dos sessenta, era de se esperar que o grau de maldade ou malefício praticado com terceiros, pelo menos baixasse de nível. Qual nada! Quando se encontravam sozinhos, fosse em São Paulo ou na Bahia, podia-se esperar que algum mal feito apareceria.
Não os que vou nomear pelas verdadeiras identidades, mas os batizarei com nomes bem comuns, impossível de serem identificados. Poderia ser Tonho e Tião, Chico e Mau ou Bené e Nando, mas estes personagens serão apenas Zé e Beto. Qual deles mora na Bahia e qual mora em São Paulo, também pouca importância tem. O fato é que a molecagem que os unia era intransferível e impulsiva, como se fossem viciados naquilo.
Certa ocasião Beto passou a semana em São Paulo a trabalho. Trabalho pesado que demandou muitas horas de negociações e muita queima de pestanas, coisa de responsabilidade. Seu voo de volta só seria no início da noite do sábado. O Zé também estivera envolvido com corretores e corretagens e na sexta-feira à noite, além de estarem exaustos, o Zé precisava ir ao aniversário de um dos netos.
-Primo –determinou ele pelo celular –Vamos almoçar amanhã.
-Tenho que ir cedo ao Mercadão comprar umas encomendas. De lá passo no hotel, pego a bagagem e encontramos no Dinho’s. Depois você me deixa em Congonhas.
-Combinado. Colocaremos os assuntos em dia.
Era um pouco depois de uma da tarde quando chegaram ao restaurante. Lotado. Programa que a paulistanada adora: almoçar fora no sábado, empanturrar-se de comida e bebida e depois...bem, depois cabe a cada qual o seu próprio destino.
Esperaram um pouco, encostados no balcão do bar, adiantando os assuntos, tomando chopes e amenizando a fome com umas azeitoninhas verdes. Então, foram convidados para a mesa. Bendita mesa, perto do bufê onde estavam os acompanhamentos.
Ao se sentarem pediram ao garçom para evoluir do chope para o whisky e colocaram um litro de Johnny Walker Red na mesa.
Brindaram e conversaram, riram e relembraram fatos passados, inclusive as “artes”. Numa mesa ao lado, enorme de comprida, uma família quatrocentona comemorava alguma efeméride, o patriarca na cabeceira, os filhos por perto e a criançada em volta na maior algazarra, que os pais tentavam, mas não conseguiam controlar.
De vez em quando, entre uma golada e outra do whisky saboroso, um dos dois se levantava e ia se servir das entradas. O serviço ótimo também levava petiscos para a mesa. Então o Zé, observador atento, viu o sapato de uma das senhoras da mesa barulhenta fora do pé. Para ficar mais confortável, ela cruzara os tornozelos por baixo da cadeira direcionando os calcanhares para trás. Só que, do pé que não estava apoiado no chão, o sapato escorregou e caiu despretensiosamente bem atrás da poltrona. Zé se virou para Beto e mostrou o pé do calçado enquanto imaginava que proposta faria.
-Beto –disse ele sedutor –se você apanhar e esconder o sapato daquela madame, eu pago a conta sozinho.
O baiano deu uma discreta olhada de costas virando a cabeça com certa dificuldade. O ângulo era favorável a Zé, mas dificultoso para Beto.
-Como é o negócio?
-Dê um jeito de dar fim no pé do sapato daquela criatura que eu pago o almoço.
-Rapaz...é meio complicado! Como é que eu vou me abaixar atrás da cadeira? Isto pode até dar em briga.
-Então eu vou e você paga o almoço –reagiu Zé.
Beto nunca foi afeito a prejuízo. Na verdade,seu objetivo de vida sempre foi o lucro, mesmo pequeno, pouquinho, de meros reais. –“De grão em grão a galinha enche o papo! ” –Defendia-se quando alguém insinuava uma possível mesquinhez.
Ele olhou para um lado, olhou para o outro, viu que na mesa grande todos estavam sentados, inclusive os diabólicos meninos. Pegou o prato e se levantou. Calculou o trajeto, certificou-se de que ninguém à sua volta lhe prestava atenção e partiu em direção ao bufê pela rota do sapato. Quando passou atrás da cadeira da madame, ele deu uma discreta olhada para o piso –não poderia errar a pontaria –e deu uma bicuda, daquelas que se dava em bola de meia, no sapato abandonado. No piso de mármore preto e branco muito bem polido, o scarpin rodopiou como uma agulha de roleta e bem na frente perdeu-se embaixo da toalha longa da mesa do bufê! Ele respirou aliviado, olhou de longe para Zé como quem diz “está garantido o meu almoço, viu? ” e seguiu impávido adiante. Serviu-se de tudo um pouco e, cinicamente, com a cara mais limpa do mundo, retornou ao seu lugar. Ninguém havia percebido o incidente calculado.
-Está garantido! –Afiançou Zé gargalhando discretamente. –Inclusive porque a diversão vai ser grande. Não vejo a hora de pedirem a conta.
A tarde caminhava animada para o clímax. O movimento começou a diminuir e, quase três quartos do litro de whisky depois, o patriarca da mesa grande pediu a conta. O maitre solícito não demorou. O homem pagou tudo sozinho, sem pestanear. Entregou a conta ao maitre dentro de uma capa de couro com uma gorda gorjeta e foi o primeiro a se levantar. Levantaram-se todos, até as doçuras dos netos, apenas madame não se levantava. Olhava embaixo da cadeira estofada, levantava a toalha da mesa, gesticulava em direção ao companheiro, dedo em riste, lábios crispados. Foi tanta confusão que logo estavam todos os membros da família de joelhos no chão, debalde em busca do pé do sapato. A balbúrdia começou a perturbar os demais clientes inclusive Beto e Zé. Isto fez com que o maitre solícito se aproximasse da mesa dos primos Por ser vizinha, portanto mais sujeita às intempéries.
-Os senhores nos desculpem, mas houve um incidente.
-Que tipo de incidente? –Perguntou Zé, com ar desinteressado.
-O senhor imagine que aquela senhora –disse o maitre curvando-se, virando de lado a cabeça e falando em direção ao ouvido do cliente –perdeu um pé de sapato aqui dentro.
-É garantido que ela entrou com os dois pés? –Indagou o baiano.
-Ah! Sim, certamente. É um sapato de salto alto, se ela estivesse apenas com um dos pés, estaria mancando.
Enquanto isto, outros clientes incomodados reclamavam da balbúrdia e a confusão aumentava para desespero dos garçons e cumins sempre acostumados com o ambiente comportado.
Beto e Zé sorriam contidamente sem poder gargalhar, afinal um deles era o responsável pela celeuma. Então as mesas em volta da grande mesa começaram simultaneamente a pedir as contas para saírem do reboliço. Como os funcionários estavam imbuídos do propósito de encontrar o sapato, não traziam as contas, nem serviam as mesas. Alguns clientes ameaçaram sair sem pagar, mas neste caso não receberiam os automóveis das mãos dos manobristas. O tom das vozes foi aumentado. A balbúrdia cresceu de tal forma, que o gerente se apresentou. Era um homenzarrão, cabelos ralos, de voz autoritária. Tentou contornar a situação oferecendo outro par de sapatos à madame:
-Meu sapato é um Salvatore Ferragamo italiano! –Disse ela em voz alta e já completamente descalça uma vez que retirou o outro pé do sapato para mostrar ao gerente. Depois que ela ficou descalça, dava para perceber que era pouco mais do que a metade da altura do gerente elegante apesar de barrigudo e muito educado até àquela altura.
-Zé –disse o baiano em voz baixa. –Ligue praJovem Pan e conte o que está acontecendo! Pra festa ficar boa, só falta a televisão entrar por aquela porta.
Mas a sugestão só fez o primo rir mais um pouco. Ele não faria aquilo. Ânimos exaltados prenunciam briga e onde há briga, a polícia chega. A turma do “deixa disso”,muitos sob efeito de álcool, atuava bravamente. Até aí sem sucesso. Então aconteceu o inesperado.
Uma salvadora da pátria apareceu na forma de uma funcionária fardada e com avental, aquela encarregada de passar o pano no chão de mármore quando algo derrama. Muito simpática, mirradinha, de toca na cabeça, foi caminhando de detrás da mesa do bufê com uma vassoura numa das mãos e o dito pé de sapato na outra. Fez-se total silêncio naquela ala do salão, a que havia se envolvido diretamente na confusão do sapato. -O sapato estava embaixo da mesa do bufé! -Esclareceu ela sem se importar como o sapato havia ido tão longe sem a dona.
Uma vez entregue à madame, os ânimos se acalmaram, as contas foram pagas com um desconto promocional de trinta por cento para todos como compensação pelo ocorrido e o caso deu-se por encerrado.
No carro, indo para o aeroporto, os primos sorriam e gargalhavam lembrando das feições e atitudes dos envolvidos, inclusive as deles, os causadores da confusão.
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