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Naturalidade - A ser publicado no livro Tatu-a-pará, A natureza Humana

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 2 de nov. de 2021
  • 8 min de leitura

Naturalidade

Ticiano Leony

Na década de 1970 na Bahia, todo estudante que ia do interior fazer vestibular em Salvador para tentar entrar na Universidade, se a família não tinha casa ou apartamento na Capital, o destino era um pensionato. Não era hotel, nem pensão, era pensionato que parece ser a junção de “pensão” com “internato”. Os pensionatos eram casas de famílias outrora bem aquinhoadas que, por qualquer deslize do destino perderam a posição no extrato social, mas ainda mantinham os imóveis em condições sofríveis, porém utilizáveis. Talvez por isto sempre ficavam localizados nos bairros que já tinham sido os melhores endereços de famílias “de bens”. Saúde, Barbalho, Barris, Soledade, Politeama e o próprio Centro da cidade, em ruas antes residenciais, como Direita de São Bento, Avenida 7 de Setembro no trecho das Mercês, Rua do Bângala, Largo Dois de Julho, Ladeira do Sodré, Ladeira dos Democratas. Nunca havia pensionatos em bairros mais recentes, onde moravam as famílias mais abonadas daquela época.

Os pensionatos tinham algumas características sui generis: os quartos eram mobiliados com beliches, as salas maiores e supérfluas eram subdivididas e transformadas em outros quartos, utilizando-se tabiques para aumentar a capacidade do empreendimento. Jamais havia suítes –moda de banheiros menores e exclusivos de cada quarto, adotada apenas nos anos 1980 em diante. Geralmente havia apenas um telefone e um banheiro compartilhados por todos que morassem no pensionato. Além disto tudo, a morada era dividida irmãmente com a família proprietária da casa e que administrava o negócio.

Muitas amizades nasceram nos pensionatos, mas nenhum namoro ou casamento, porque os pensionatos eram masculinos ou femininos –“aceita-se rapazes” ou “só para moças” eram os dizeres das placas colocadas nas paredes frontais das casas de família. Geralmente os pais dos candidatos a residentes, iam a Salvador contratar a hospedagem antes de começarem as aulas dos filhos e filhas estudantes.

No início daquela década de 1970 o Carnaval era forte na cidade da Bahia. Havia muitos blocos desde Apaches do Tororó e Comanches, de apelo indígena, até Filhos de Gandhi, além dos blocos de mortalha e fantasia como o Jacu, os Internacionais e Os Amigos do Barão, que saíam atrás de caminhões abastecidos de água e cerveja para os foliões e que seguiam um dos inúmeros trios elétricos pelas ruas centrais da cidade. O trajeto, que começava geralmente no Campo Grande, seguia a Avenida 7 de Setembro, passando pelo trecho das Mercês, Praça da Piedade, Relógio de São Pedro e descia a Ladeira de São Bento em busca da famosa Praça Castro Alves. Alguns ainda subiam a Rua Chile e só retornavam da Praça da Sé onde era obrigatório o fim do desfile já que não havia como passar um trio pelo outro no retorno da Praça da Sé. Os que iam até a Praça Castro Alves retornavam pela Senador Costa Pinto, Rua Carlos Gomes e se dissipavam no Largo dos Aflitos. O roteiro dos desfiles naquela época era assim.

Quando os estudantes chegavam para definitivamente se hospedarem nos pensionatos, traziam seus pertences de uso pessoal em malas e sacolas. Não havia espaço para todos terem armários, de modo que em alguns pensionatos se disponibilizava a colocação de baús de madeira que, fechados, serviam de mesa de apoio ou banco para ajudar a calçar meias e sapatos. Mas, sempre havia as exceções.

Almiro era um rapaz estudioso da cidade de Cipó, estância termal do semiárido baiano. Já havia feito o vestibular e, aprovado em Engenharia Civil na Politécnica, foi com o pai, presidente da Câmara de Vereadores da cidade, em busca de um pensionato para alojar o rapaz. Depois de zanzar pelos bairros, optaram por um que funcionava num casarão da Rua Direita da Piedade, quase esquina com a Rua General Labatut que dava acesso ao Barris. Era um grande pensionato, cômodos amplos, três andares ligados por vasta escada de madeira, e ainda um porão de pé direito baixo, onde ninguém era acomodado –só servia para refrescar o tabuado de madeira do piso térreo.

Quando estavam tratando dos valores, vendo espaço sobrando, Almiro solicitou, e conseguiu, que permitissem que ele levasse um guarda-roupas. O pai ainda quis demovê-lo de tal ideia, mas não teve jeito. O dono do pensionato combinou que podia ser um guarda-roupa de duas portas que medisse no máximo 1,40m de largura e 1,80m de altura. Tudo foi acertado e o vereador pagou logo três meses adiantado.

Almiro chegou na data aprazada com o armário nas medidas certas, guarda-roupas de duas portas de madeira envernizada, com chaves, em cima da carroceria de madeira da C-10 de Seu Filózinho, junto à malas e bagagem. Tudo foi acomodado no quarto do primeiro andar e dois dias depois, já tendo chegado os demais colegas, as aulas começaram e com elas as adaptações ao transporte, às refeições, aos horários pré-determinados dos banhos e, principalmente, aos estudos. Na Politécnica, Almiro fez camaradagem com vários outros colegas da Capital e de várias cidades do interior. Assim se passaram os dois primeiros anos.

Foi quando aconteceu o inesperado, já no mês de dezembro: o dono, administrador do pensionato, faleceu de um infarto agudo do miocárdio e a viúva avisou que, sem o marido, no ano seguinte o pensionato não funcionaria. Ficou então combinado que, para não perderem as festas de final de ano em suas cidades, os pertences poderiam ser retirados no início do período escolar do ano seguinte.

Todos foram para as férias. No retorno, o Vereador disse que o próprio Almiro poderia, com a ajuda dos colegas, escolher e contratar o novo pensionato. Assim foi feito. Depois de visitar vários pela cidade toda com outros amigos do pensionato fechado, o rapaz optou por um localizado no Largo Dois de Julho, pelo simples e direto fato de ser apenas aquele que aceitou seu guarda-roupas. Na sexta-feira de Carnaval, folia instalada, começaram a mudança levando as coisas mais leves, livros, réguas “T”, calculadoras, cadernos e apostilas e as malas e baús com roupas e objetos de toucador.

Já estavam acomodados e dormindo no novo pensionato.

-Agora só falta o armário! –Disse Almiro. –Vamos buscar amanhã.

Mas ele não arranjou um carro de frete sequer, que aceitasse a empreitada. Além das ruas estarem com o trânsito parcialmente obstruído, em algumas completamente interrompido, ninguém queria trabalhar no sábado da animada folia momesca. O sábado passou sem sucesso. Então veio o domingo e na segunda feira, no meio do café da manhã em volta da mesa bem sortida, forrada com a tradicional toalha floral de plástico e feltro, Almiro determinou a mais três amigos do pensionato, Jurandir, Márcio e Caminha:

-Vamos buscar o armário hoje.

-Marrapaz! –Respondeu Jurandir, o mais chegado ao amigo. –Se era para ir hoje, você deveria ter falado ontem e teríamos ido cedo. Mas agora? No meio do Carnaval, não vai dar!

-Dá, sim! –Respondeu teimoso o dono do guarda-roupas –Conto com vocês ou não? Não aguento mais ver minhas coisas no chão.

-Então vombora! –Falaram os outros dois.

Já havia passado do meio dia quando saíram do pensionato no Largo Dois de Julho. O trajeto era relativamente pequeno: Rua da Forca, atravessar a Rua Carlos Gomes, a Praça da Piedade e o pedaço da Rua Direita da Piedade até o pensionato em direção à General Labatut.

-É um pulo! –Decretou Almiro.

Só que a quantidade de gente nas ruas em busca da fuzarca, era demais. Caixas de isopor e toneis com gelo e cerveja, atrapalhavam a caminhada. Havia tabuleiros de comida, balaios de frutas e pessoas nas ruas, muitos de mortalhas dos blocos onde, locais e turistas, desfilariam daí a pouco. Chegaram ao pensionato e acionaram a aldrava da porta.

Ao longe o som tonitruante de algum trio elétrico para as bandas do Campo Grande.

Finalmente a viúva abriu a porta. Ela imediatamente reconheceu seus antigos hóspedes.

-Dona Marilda, vim buscar o armário.

-Está bem, meu filho –disse ela com ar maternal –podem ir buscar.

Os quatro jovens cavalheiros foram ao antigo quarto e afastaram o armário da parede. Com alguma dificuldade desceram a escada e ganharam a rua depois de se despedirem da antiga anfitriã. O movimento havia aumentado e muito. Pegaram e, com jeito carregaram o guarda-roupas, dois amigos na frente, dois atrás. E lá foram eles, lentamente, pé ante pé, porque o mundaréu de gente não permitia a passagem de quatro sujeitos a um só tempo e a passos normais, pelos espaços exíguos.

Com alguma dificuldade chegaram à Praça da Piedade. Atravessá-la foi um périplo. Finalmente, quando chegaram à oposta esquina da Igreja de São Pedro de onde atravessariam a Avenida 7 de Setembro para entrar pela Rua da Forca, tiveram uma surpresa. Imponente e zoadento, estava passando um trio elétrico e atrás dele um bloco sem corda. Eram milhares de foliões na rua e os quatro ali, em pé, na calçada, esperando o trio passar. Aí, os dois que estavam na frente, únicos que poderia enxergar o caminho para dar a direção ao transporte, perceberam que muitos foliões subiam o meio fio e vinham pela calçada em direção a eles. -Fazer o que?- O bolo de gente aglomerada foi se aproximando e começou a passar por baixo do armário, instintivamente.

De repente o guarda-roupas ficou leve e no momento seguinte, sem que qualquer dos quatro estivesse sentindo o peso, o armário ganhou a avenida e seguiu atrás do trio elétrico, flutuando sobre as cabeças do povo como se fosse um barco num caudal ou um esquife num cortejo fúnebre. Almiro gritava: –Meu armário! Meu armário! –Mas era impossível alguém ouvir tal a altura da música carnavalesca que animava os foliões. Assim o guarda-roupas desapareceu na curva adiante do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. A multidão acabou de passar puxada pelo trio, o povo pulando, se divertindo e levando o armário.

-E agora? –Perguntou o dono do móvel.

-Agora, já que estamos aqui –respondeu Jurandir –vamos na La Fontana tomar uma gelada em despedida do guarda-roupas!

Almiro estava desconsolado, mas, sentado com os companheiros nos banquinhos do balcão da La Fontana, bebendo cerveja e comendo coxinha, acabou relaxando.

-Depois do carnaval, você compra outro armário! –Decretou Caminha categórico.

Eles eram estudantes, mas tinham algum recurso. Não haviam almoçado ainda e estavam famintos, de modo que tomaram a segunda, a terceira e ao fim da tarde, tinham consumido um engradado de garrafas de seiscentos mililitros de Chopp ’70, cerveja bem gelada e “da moda” naquele Carnaval da Bahia. Passavam milhares de pessoas pela Rua Carlos Gomes. Um mundaréu de gente voltando dos desfiles dos blocos e afoxés que terminavam na Praça Castro Alves. De repente ouviram a música animada das guitarras elétricas. Na tarde fresca que ameaçava virar noite, os trios acendiam as luzes. Eram feericamente ornamentados com feixes de gambiarras e cordões de neon. O incrível é que ainda tinha gente com disposição para voltar, pulando atrás do trio. Aquele que retornava era o de Dodô e Osmar, um dos poucos que se sujeitava a retornar puxando os foliões. Dodô, Osmar e Armandinho ainda menino, tocavam porque gostavam, exibiam com orgulho aquela sua criação.

Almiro, Jurandir, Caminha e Márcio se levantaram e, de copo nas mãos assistiram o caminhão musical gigante se aproximar. Foi vindo, se arrastando em direção a eles. Então Jurandir observou:

-Foi este o trio que levou o armário.

-Não foi! –Respondeu Márcio.

-Foi, sim. Você não reconhece porque estava apagado e agora está aceso! –Contrapôs Caminha.

O trio passou por eles, lentamente, o povo dos lados cercando o grande caminhão. Então eles se viraram simultaneamente para observar a traseira do trio. Qual não foi a surpresa que tomou conta dos quatro: outra vez, navegando sereno sobre as cabeças de centenas de foliões, lá vinha o guarda-roupas envernizado e intacto.

-Não acredito! –Gritou Almiro. –É o meu armário. E agora?

-Agora vamos tomá-lo de volta! –Gritou Jurandir embalado pelas cervejas.

Caíram na folia atrás do trio e foram aos poucos se aproximando da peça, até que conseguiram dominá-la simultaneamente. Então, foram saindo para o lado da Rua da Forca, estreita e menos movimentada, até que conseguiram tirar o armário da folia.

Já eram sete horas da noite quando chegaram ao pensionato do Largo Dois de Julho com o armário na cabeça e esta história que, até hoje, contada ou escrita, ninguém acredita.

 
 
 

1件のコメント


Silvia Pimentel
Silvia Pimentel
2021年11月12日

Como foi descrito os pensionatos eram formados pelos estudantes que custeavam a sua estadia. Posteriormente, quando algumas prefeituras resolveram apoiar o estudo dos seus munícipes, futuros profissionais que orgulhariam os municípios, as moradias passaram a ser chamadas de repúblicas. O poder público mantinha o aluguel do imóvel e a estrutura básica necessária a dormidas e preparo de refeições. Os demais itens eram rateados por todos ou mandados pelos pais ou responsáveis. Era uma época mais saudável, mais amiga e responsável pela formação de gerações de profissionais, que na maioria das vezes voltavam a cidade de origem.

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