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O gato Marotim

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 1 de nov. de 2021
  • 6 min de leitura

​​O gato Marotim e a Praia do Forte

​​​​​​​​Ticiano Leony

-Não foi jamais, nem tem sido fácil! –Dizia Marotim, o gato dourado, a Macbeth, seu mais recente amigo!

-Well... –respondeu o turista britânico–apesar de Buckingham continuar habitado pela rainha quase centenária, também não é fácil para mim.

-Mas, pelo menos, lá tem moradores, tem gente que joga comida fora ou deixa à toa para você e os seus…afanarem quando se distraem. Aqui, não! É uma ruína. Só vêm turistas e nada nos dão, a não ser rótulos e embalagens das porcarias que consomem!

-E como aconteceu isto? Como uma casa senhorial e deste porte, virou apenas ruínas? –Perguntou Macbeth.

​Foi aí que Marotim contou sua história, desde os velhos tempos.

-Meu ancestral mais distante, que sequer tinha nome, veio na caravela do primeiro governador do Brasil, o português Tomé de Souza. Ele vivia no Porto de Lisboa e estava tirando uma soneca em cima de um barril num convés, quando a caravela zarpou! Ao despertar, já era tarde. Só viu céu e mar.

-Como você sabe de toda esta história?

-Macbeth, temos o sistema dos griôs que contam a história passando-a de pai pra filho, de boca a boca.

-Então prossiga. Não estou acreditando muito, mas vamos adiante.

-Foram muitos dias de travessia, e meu antepassado ali sozinho, tendo que caçar ratos e camundongos para sobreviver. Um belo dia gritaram de cima do mastro: –Terra à vista! –Meu avô longínquo, quando desembarcou escondido numa catraia, se viu numa terra estranha e quente, porém acolhedora. Zanzou pela Vila do Pereira e foi se chegando a uma família de um lusitano que foi um dos primeiros a chegar ali. Chamava-se Caramuru. Em casa dele já havia outros de nós,gatos, mas não se tem registro de como chegaram por ali.

-E esse Caramuru, como chegou?

-Eu só soube pelos contadores da nossa história, que o barco dele afundou. Ele chegou à costa e depois de dar um tiro de arcabuz, foi adotado pelos índios. Juntou-se à filha de um cacique e ajudou muito ao conterrâneo dele a tomar conta daquelas terras. Mas, e você, como chegou por aqui?

-Ah! Prezado amigo, a minha história é mais simples. Vim na sacola da madame, minha dona, de avião, passear no hotel da Praia do Forte, um hotel imenso que conhecem por um nome inglês: “resort”! hahahaha! Detalhe, lá há muitos de nós, uma população imensa!

-Eu sei, lá tem alimento à disposição! É um ótimo lugar para se morar.

-It’s true! –Confirmou o gato inglês. –Mas me conte o resto da história.

-Resto? A história é longa. Estamos aqui há mais de quatro séculos! Junto com o Tomé, veio um parente dele lá de São Pedro de Rates, chamado Garcia d’Ávila. Ele foi designado almoxarife da colônia.

-Que é almoxarife?

-É um funcionário público incumbido de tomar conta das coisas do reino, fazer compras, distribuir os produtos entre os colonos, pagar aos fornecedores. Era um cargo muito importante. Garcia foi morar num grande armazém e para lá se mudou meu tatatatataravô. Gato esperto, constituiu família com uma nativa de lá. Dizem que os filhotes deles eram lindos, tão formosos que quando Garcia recebeu estas terras aqui de Tatu-a-pará...

​Então Macbeth o interrompeu...

-Como é o nome? Não compreendi...

-Estas terras eram chamadas de Tatu-a-pará pelo povo que morava aqui.

-Que nome estranho!

-É do idioma falado pelos índios que habitavam esta bela costa!

-...and so?

-...a primeira mulher de Garcia, Mércia Roriz, não teve filhos. A segunda foi uma índia tupinambá,batizada de Francisca Rodrigues. Ela trouxe umadas filhotinhas com ela. Esta foi quem deu início à nossa família. Garcia d’Ávila era um sujeito muito ativo, muito trabalhador, um humano destemido. Entrou pelos sertões e começou a conquista de muitas terras. Francisca teve uma filha chamada Izabel que ficou viúva cedo e casou outra vez. Sabe com quem?

-Nem imagino! –Respondeu Macbeth.

-Com um neto do tal Caramuru! Chamava-se Diogo Dias e teve um filho chamado Francisco que deu o início ao morgado.

-O que é “morgado”?

-É um termo das monarquias. Lá em sua terra deve ter com outro nome. Mas é a garantia da sucessão para o filho mais velho, o primogênito, do título de nobreza. Às vezes envolve os bens.

-Vou ver aqui no Google! –Disse Macbeth.

​Então o turista sacou de um smartphone de última geração. Fez a consulta calmamente e olhou para seu interlocutor.

-Pode ser traduzido ao pé da letra como “Majorat”, mas genericamente é um “heir”, um herdeiro.

-Isto deve ser coisa de monarquia portuguesa! –Ponderou Marotim.

-Então prossiga!

-Bem, Diogo Dias casou com Ana Pereira. Foi este Francisco Dias D’Ávila que construiu a primeira casa senhorial que veio a chamar-se “casa da torre” porque na região entre os Rios Minho e Douro, lá em Portugal, os solares chamam-se “casas da torre”.

-E antes?

-Antes era apenas uma casa simples de pau a pique.

-Pau a Pique?

-Sim, um estacado de madeira para prevenir os ataques dos índios. Esta mais recente foi feita de pedra, cal, pó de ostra e óleo de baleia, mas ainda não é esta das quais vemos as ruinas. Isto foi pelos idos de 1621. Em 1624 a Bahia foi invadida pelos holandeses. Francisco Dias d’Ávila ajudou a expulsá-los e por isto ganhou muito prestígio para a Casa da Torre.

-A história é complicada... –Comentou Macbeth.

-Você nada viu ainda. Vai complicar mais.

-So... go ahead!

-Yesss, my dear!

-Oh! Você fala inglês?

-Precisei aprender um pouco para entender os turistas que veem aqui... Pois bem, Ana Pereira tinha um irmão que era padre, Antônio, e uma irmã, Leonor. Sabe o que aconteceu?

-Nem imagino...

-O filho de Ana e Francisco, chamado Garcia, o mesmo nome do bisavô que veio com Tomé de Souza. Pois este Garcia casou com a tia aos dezenove anos! Imagine!

-Que coisa! Mas é usual nas monarquias para não se perder o sangue das famílias e preservar o patrimônio.

-Pois é! Então, prosseguindo. Garcia e Leonor tiveram um filho Francisco que teve filhos bastardos. Entre eles um varão chamado Garcia d’Ávila Pereira. Garcia casou-se com Inácia de Araújo Pereira e teve outro Francisco. Este foi quem fez a ampliação da casa da Torre que viraram estas ruinas que vemos hoje.

-Mas eu quero saber, por que não conservaram o casarão?

-A herança se perdeu...Um dos netos de Garcia que era também Garcia, deixou de ir conquistar novas terras. Casou-se com uma moça dos engenhos do recôncavo e conheceu a boa vida de saraus, banquetes e confortos. Como os engenhos eram perto da capital, ele praticamente abandonou a Casa da Torre. A mãe dele, Ana Thereza era irmã de gente muito importante da corte, um tal José Pires de Carvalho e Albuquerque. Um dos descendentes do José, teve filhos fora do casamento que colocaram em dúvida os direitos de herança. Resultado que brigaram nas cortes de Lisboa tendo que custear advogados caros. Os jesuítas que há muitos anos brigavam com a Casa da Torre, também colocaram em dúvida os direitos do Morgadio dos Ávila e, combinados com os contratistas e posseiros, começaram a não pagar as rendas. A família foi empobrecendo e as terras remanescentes precisaram ser vendidas. Já na república foi vendida a Laurindo Régis, secretário do Governador Régis Pacheco. A esta altura a Casa da Torre já estava em ruinas.

-E nos dias de hoje? –Perguntou Macbeth.

-Bem, nos anos 1970 todas as terras restantes foram vendidas a Wilhelm Hermann Klaus Peters. Este homem foi um divisor de águas na Praia do Forte.

-Por que Praia do Forte?

-Isto é outra história.

-Pode contar? Ou vou puxar muito por sua memória? –Perguntou Macbeth.

-Vou resumir: na praia, do lado Norte da foz do Rio Pojuca, no início dos anos 1700, foi construído por Garcia D’Ávila Pereira a mando do Governador Geral, um forte de pedra, cal, pó de ostra e óleo de baleia e armado com canhões de artilharia pesada para defender a capital da colônia, São Salvador da Bahia. Como o forte era na praia, a praia ficou sendo conhecida como a praia onde tem um forte, que virou Praia do Forte.

-Onde está hoje?

-Foi tomado pelas águas do oceano e está submerso.

-Hummm! Interessante. O que Klaus fez? Ele era alemão? Com um nome deste?

-Descendente de alemão. Industrial em São Paulo. Veio passear aqui quando nem existia estrada nem ponte. Teve que atravessar o rio numa balsa. Encantou-se e resolveu fazer da região da enseada de Tatu-a-Pará uma reserva natural que chamou de Sapiranga. Era o último trecho de Mata Atlântica que restava por estas bandas. Klaus era preservacionista.

-Se fosse hoje faria parte do Greenpeace...Mas a reserva agora está desaparecendo! Foi o que observei...

-De fato, Macbeth. Depois que Klaus Peters morreu, a fundação que ele criou com o nome de Garcia d’Ávila, assim como todas as terras remanescentes foram passadas a grupos de capital privado, mas enrolados com interesses públicos. O resultado é o que se está vendo: estão derrubando tudo para fazer casas, condomínios, apartamentos, estas coisas das quais os humanos não prescindem. Os animais silvestres estão sendo dizimados assim como as espécies da flora.

-É, indeed, do jeito que vai, a Praia do Forte vai ter o mesmo destino da Casa da Torre. Só que esta, sendo uma construção dos humanos, pode, se quiserem, reconstruir, mas o que a natureza fez ao longo de centenas ou milhares de anos, ninguém jamais vai recuperar.

 
 
 

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