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Os Santos

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 6 de jan. de 2021
  • 20 min de leitura

Excerto de Serinhaém-Azul do Mar Profundo, Ticiano Leony, Editora Caramurê, 2016

Os Santos Ticiano Leony O hospital era uma velha construção dos idos de mil e oitocentos. Foi sempre um nosocômio, como se chamava na época. Tendo sido a Faculdade de Medicina da Bahia a primeira do Brasil, nada mais justo que a Santa Casa de Misericórdia edificasse um prédio para ser seu hospital mater, uma casa de saúde à altura das melhores do Brasil daquele tempo. Os alunos se formavam em Medicina no Terreiro de Jesus, antigo Colégio do Jesuítas, e iam garbosos fazer a residência no Hospital Santa Izabel. Ainda não havia quartos particulares, todos os pacientes eram acomodados nas enfermarias. Assim, os professores na aulas práticas da residência, saiam visitando os internados em todas as enfermarias e ministrando as aulas práticas. Cada paciente era minuciosamente examinado pelo mestre e feitas as anamineses, chegavam às conclusões dos diagnósticos depois de apalpações e auscultações. Tudo era discutido ali mesmo, às vezes até perante estranhos, fossem acompanhantes, enfermeiros ou outros doentes. As enfermarias eram enormes, com piso tabuado, e pé direito muito alto. As janelas eram igualmente altas, assim como altas eram as portas sob as bandeiras de vidro jateado. Com a evolução da medicina, as enfermarias perderam sua função, assim como as aulas ao pé dos leitos tornaram-se mais escassas, os exames em sofisticados aparelhos eletrônicos, sucedâneos dos Raios X, tornaram-se capazes de prover um diagnóstico mais seguro e menos subjetivo. A Medicina vai aos poucos se tornando uma ciência exata, dependente da engenharia, da eletrônica e da acurácia dos aparelhos e computadores. Desta maneira deveria a prática ter se tornado mais barata, mais ao alcance dos doentes de todas as classes sociais. Como nem todas as especialidades estavam contempladas no hospital, vez ou outra o corpo clínico precisava chamar alguém de fora, para, numa conferência médica, corroborar com algum diagnóstico. Foi assim com um paciente oriundo de feira de Santana, no interior do Estado, com uma patologia cardíaca raríssima. Titular de uma das melhores clínicas do coração na capital, o elegante doutor Hugo Napolitano, do alto de seu garbo, foi solicitado a comparecer ao hospital para examinar e assumir o caso de Francisco Quirino, carinhosamente chamado de Francisquinho pela sua dileta esposa Guimar. O médico, sempre usando camisa de cambraia de algodão e gravatas de marca europeias, sob o sempre alvíssimo e bem passado guarda pó, onde, na dobra do bolso ao lado direito do peito se lia, bordado em letras azuis Dr. Hugo Napolitano, chegou ao pé do leito de seu Francisquinho, logo cedo pela manhã. Trazia ao pescoço um luzidio estetoscópio que contrastava com o largo bigode sempre bem aparado com fina tesourinha de ponta curva, diziam, para compensar a falta de cabelos no alto de seu resplandecente cocuruto. Rodeado de residentes e professores titulares, aproveitaria para ministrar ali uma aula prática acerca da rara enfermidade, o que poliria ainda mais sua conhecida e justificada vaidade. Depois de muitos minutos a confabular com os demais, solicitou novos exames de praxe. Ao sair da consulta, dona Guiomar o chamou a um canto do corredor e indagou qual o valor dos honorários. Ele educadamente pediu que ela não se preocupasse, afinal um caso como aquele, com tal grau de raridade e baixíssima ocorrência, ensejaria mais até assunto para pesquisa do que propriamente custos de tratamento. Mas que veria o que poderia ser feito quanto à definição do valor a ser cobrado. Os exames foram imediatamente providenciados. A partir deste dia, e pelos seguintes quinze, doutor Hugo se fez presente ao pé do leito de seu Francisquinho para acompanhar a terapêutica recomendada. Mas não quis o destino que o paciente sobrevivesse e a despeito dos inúmeros esforços do médico e da equipe, o doente veio a óbito após lutar bravamente contra as arritmias e tentar ultrapassar a crueza de um fulminante infarto do miocárdio. Não teve jeito para ele. Duas semanas depois de sua morte, dona Guiomar tratou de telefonar para o consultório de doutor Hugo para marcar uma visita a fim de lhe agradecer pelos cuidados e eventualmente pagar o tratamento ainda que não tenha sido bem-sucedido. No meio de uma tarde ensolarada, depois de subir o elevador até o andar da clínica que ocupava todo o terceiro andar do prédio moderno envidraçado, refrigerado e luxuoso, dona Guiomar aproximou-se da recepcionista bem trajada e orientada profissionalmente a lidar com os pacientes do doutor Hugo e seus familiares. -Boa tarde, senhora –saudou a moça. -Boa tarde, eu gostaria de falar com o doutor Hugo –declarou dona Guiomar. -A senhora é paciente? -Não, sou a viúva de Francisco Quirino. Vim acertar os honorários. -Ah! Um momento por favor. A moça pegou o interfone e avisou à pessoa do outro lado da linha que dona Guiomar estava na clínica. Mas ela falou tudo num tom de voz baixinho, quase inaudível, verdadeiro sussurro. Voltando-se para dona Guiomar, pediu que ela aguardasse um pouco. -Doutor Hugo vai atendê-la entre duas consultas. Pode sentar-se e aguardar. Algum tempo depois a porta do consultório foi aberta e dele saiu um cliente. O doutor então, simpaticamente dirigiu-se a dona Guiomar e pediu que ela o acompanhasse. Uma vez lá dentro, depois de acomodada numa das duas confortáveis poltronas em frente à escrivaninha do médico, ele disse: -Dona Guiomar, lamento muito a perda de seu esposo. E eu também porque perdi um paciente portador de rara síndrome. Mas a vida é assim mesmo, infelizmente não se consegue salvar a todos –declarou o clínico. -Pois é, doutor. Isto é deveras triste. Lamentei muito, mas que se há de fazer? Graças ao bom Deus ele não sofreu, foi uma morte rápida e creio que indolor. -De fato, tão rápida que quase nada se pode fazer. E então, o que lhe traz à minha presença? -Como indaguei ao senhor no primeiro dia de sua visita ao hospital, eu gostaria de saber seus honorários. Sem titubear doutor Hugo disse-lhe que cobraria um determinado valor pelas várias consultas dele e de sua vasta equipe à domicilio acrescido de terapêuticas adicionais que resultaram em “tal quantia”. Dona Guiomar empalideceu ante a vultosa soma declarada e o doutor percebeu a situação. -Mas a senhora não precisa pagar logo, podemos até dividir em cheques pré-datados –esclareceu o médico. -Doutor, lá no primeiro dia o senhor disse que poderia até se referir a este tratamento como uma pesquisa... –argumentou a viúva. -Exatamente, minha senhora. E pesquisas de enfermidades exóticas são as mais caras a serem tratadas –respondeu o doutor. -Estou constrangida. Não disponho, nem minha família, de tanto. E lá no nosso interior, nem de plano de saúde nós poderíamos lançar mão. Estou preocupada, nem sei o que fazer. -A senhora aceita um copo d’água? –Indagou o médico solícito, preocupado que a mulher além de tudo ainda fosse ter um mal súbito ali em sua sala. -Não, obrigado. Mas posso lhe fazer uma proposta? -Claro, fique à vontade –encorajou-se doutor Hugo. -É que temos um comércio em Feira de Santana e esses dias Francisquinho adquiriu uma coleção de santos barrocos. São coisa fina, alguns de madeira, outros de terracota. Muito bonitos. Tem um São José de Botas assim, deste tamanho –disse ela enquanto levava a mão esquerda espalmada do lado da poltrona, procurando o piso para determinar a altura da imagem. O espírito sagaz de algum ancestral do Doutor Hugo Napolitano, se fez presente. Ele pôs-se a pensar no lucro que poderia vir a ter na comercialização dos santos. Certamente aquele arquiteto conhecido de sua mulher e que era mestre em recomendar peças de arte antigas aos clientes, indicaria alguns. Havia também seu amigo e colega médico, o Jaconias Almeida, que estava terminando um apartamento novo na Vitória. E aquele outro amigo médico da equipe do hospital, o Sinval Ranieri, que também apreciava e colecionava antiguidades. Todos estes santos, sendo coisa antiga, se comercializados, poderiam cobrir, até com folga, o custo do tratamento. -Quantas imagens são? A senhora sabe? –Perguntou discretamente doutor Hugo. -Claro que sei. São dez imagens. Lindíssimas. O senhor não vai se arrepender –disse dona Guiomar. -Está bem. Vou fazer esta concessão a título de caridade, se é que a senhora me compreende, afinal sou médico, não comerciante. Será, por assim dizer, quase um sacrifício. Vou ter que consultar antiquários para que os adquira. E a senhora sabe como são mesquinhos estes tipos. Cobram para avaliar e depois ainda cobram vinte por cento de comissão na venda, uns sovinas. -Claro, doutor. Sei que ainda vou ficar lhe devendo o favor. -A senhora pode mandar levá-los à minha casa? -Perfeitamente. Amanhã mesmo vou mandar embalar as imagens com plástico bolha e trazer de Feira direto para sua residência. O senhor pode me dar o endereço? O doutor pegou uma folha de receituário em branco e escreveu o nome da rua, número, nome do prédio e número do apartamento, e passou para dona Guiomar. -Doutor –disse ela enquanto olhava a folha de papel com o endereço rabiscado com letra de médico, malmente legível –Seria muito solicitar que o senhor me desse o recibo dos honorários? Como o senhor bem sabe, quem está vivo, está morto, e este acerto nosso bem que poderia ficar...assim, entre nós. Pode ser? -Claro, dona Guiomar –exultou o médico Imediatamente lançou mão do teclado sem fio do computador e redigiu o recibo do valor. Mandou a ordem para a impressora moderna e silenciosa, a laser, e sacando a folha grande e toda bordada do papel, assinou embaixo, público e raso: Hugo Napolitano. Retirou do bolso grande do guarda pó um sofisticado carimbo automático e apôs a marca sob sua desenhada assinatura. Levantou-se cortesmente e entregou a folha a dona Guiomar, dando a conversa por terminada. Estava satisfeito, afinal, nem só de medicina pode viver um homem. De vez em quando é preciso arriscar um pouco. Enquanto chegava outro paciente ficou ali, olhando pela janela do consultório os prédios ao longe, e matutando sobre o inusitado do caso de seu Francisquinho. E se os santos não fossem autênticos? E se ela se arrependesse? E se em vez de dez ela mandasse apenas cinco? Já estava imaginando que perderia uma noite valiosa de sono e talvez até precisasse recorrer a um Rivotril. Já era tarde quando deixou o consultório no seu BMW branco. Chegou em casa e a esposa perguntou qual o motivo do cenho carregado. -Algum cliente em dificuldade, querido? –Perguntou Norma. -Não, meu bem, de forma alguma. Mas que estou preocupado, estou. Como você me conhece! –Exclamou satisfeito. -Claro que conheço, somos unha e carne há mais de trinta anos. –Disse ela –e então, Hugo, o que se passa? Ele então contou à Norma o caso dos santos. E suas preocupações. -Querido, não se preocupe, desde que a viúva entregue o que prometeu. Facilmente vamos converter as imagens em valores razoáveis. Além de que, se algum sobrar, fica para completar o nosso oratório que anda meio vazio. -É, querida, você tem razão, não adianta sofrer por antecipação. Mas eu deveria ter exigido ver antes as imagens. Ou pelo menos fotografias. Ou mesmo os nomes dos santos. Sequer sei quais santos são. -Amanhã eles chegam e tudo acabará bem. Afinal, são santos! Conforme prometido por dona Guiomar, no dia seguinte, enquanto estava no consultório clinicando, Norma ligou avisando que a mercadoria havia chegado. Uma camionete Chevrolet S-10 entrou pela guarita principal do prédio depois de autorizada e o motorista e o ajudante deixaram as imagens, muito bem acondicionadas em plástico bolha e papelão ondulado, bem no meio da sala do apartamento do doutor Hugo. Ele estava ansioso demais para terminar de atender o último paciente e ir célere para casa. Queria ver o que comprara e vislumbrar até um possível lucro. Já na sala do apartamento espaçoso, de posse de uma tesoura, doutor Hugo foi aos poucos, habilmente, abrindo as embalagens. Eram pacotes maiores do que ele imaginara. O primeiro a ser desembrulhado foi um São Francisco, belíssimo, bem encarnado e bem esculpido em madeira. Depois foi a vez de um Santo Antônio, depois um São Judas Thadeu, uma Nossa Senhora da Conceição, uma imagem de um Menino Jesus “no monte”, um São Bento, o São José de Botas maior até do que Dona Guiomar havia lhe sinalizado no consultório, riquíssimo na sua pintura entremeada de pomo de ouro, uma Sant’Ana Mestra, uma Nossa Senhora do Rosário com um terço de prata na mão, outro São José com o menino Deus no colo, e uma imagem menorzinha de São Cosme e São Damião. Doutor Hugo olhou as imagens sobre a mesa de jacarandá da sala e contou. Havia onze peças. Nenhuma de terracota como a viúva havia lhe dito. Todas de madeira. Ele olhou para Norma e ela disse: -Intrigante, querido. A impressão que tenho é que fomos muito beneficiados. Amanhã vou ligar para Alberto Castelan, o antiquário, para que venha avaliar. -De jeito algum –contrapôs-se doutor Hugo –não quero este tipo de gente aqui olhando. Vou pesquisar na internet, ver os sites de leilões e eu mesmo vou avaliar. Está se vendo que são peças boas, de época. Tempo para isso eu tenho, me distraio e não preciso divulgar o que andei fazendo. Imagine, eu teria que dizer que adquiri em tal circunstância o que poderia nos trazer constrangimento. Não –reiterou –eu mesmo vou fazer as avaliações e você pode até me ajudar. Depois é só oferecer ao Marcio Quirinali, seu amigo arquiteto, e ele nos ajudará a passar. E vou falar também com Jaconias Almeida e com Sinval Ranieri que estão terminando novos apartamentos e certamente terão interesse. E tem também Sergio Lago e Paulo Pimenta que apreciam estas coisas. Não vai chegar para quem quer! -E tem o marido de Rosângela –acrescentou Norma –o procurador...como é mesmo o nome dele? -Humm...um nome esquisito –disse doutor Hugo –Tamires, doutor Tamires Lobato. -Pois é, Rosangela fez curso na Ebade e sempre está decorando apartamentos na cidade. Com certeza vamos pelo menos, dobrar o capital! –Disse esfuziante dona Norma. Depois mandaram dar fim nas embalagens e arrumar as imagens sobre um aparador para desocupar a mesa de jantar e foram se preparar para a tardia ceia da noite. Logo mais ele cairia de cabeça na internet a fim de pesquisar e avaliar cada santo. Pelo menos eram conhecidos, nenhuma das imagens era de santos pouco populares o que dificultaria a avaliação e a comercialização. Doutor Hugo, que sempre se recolhia no mais tardar às vinte e duas horas, ficou até duas horas da manhã investigando e avaliando os santos nos sites especializados da internet. Pelo menos o valor médio dos leilões do sul do País estava disponível. Ele havia medido com uma fita métrica a altura de cada imagem e assim era mais fácil comparar com o que estava sendo comercializado no mundo das antiguidades, vendido através de leilões. Ele ficou bobo de ver a quantidade de casas de leilão que havia no País, um sem número. E tudo aberto e disponível, apenas omitiam os nomes de compradores e vendedores para preservar a lisura dos negócios. No dia seguinte cedo, quando entrou no saguão do Hospital das Américas, o mais moderno e prestigiado da capital, encontrou Jaconias Almeida. -Amigo –que era assim que tratava os colegas mais chegados –tudo bem? -Tudo bem, Napolitano. E você como vai? -Vou indo. Eu ia até lhe ligar hoje –disse doutor Hugo passando a mão nos ombros do colega –Como vai a obra do apartamento? -De vento em popa! Está maravilhoso. Uma vista de arrepiar, de lá vemos Itaparica e toda a baía de Todos os Santos. Estou muito satisfeito, vai ficar uma beleza. -Olhe, Almeida. Imagine você que a viúva daquele paciente de Feira de Santana, que tinha aquele problema raro, lembra? –Indagou doutor Hugo. -Claro que lembro, o que tem ele? -Ele, nada mais. Quem tem agora sou eu. -Como assim, você está com algum problema de saúde? -Não –respondeu doutor Hugo com um leve sorriso no rosto –É que a viúva foi acertar os honorários e não teve como pagar. -É, de vez em quando acontece. Neste caso coloco Inês para resolver –comentou Almeida. -Mas no meu caso, fiz um acerto. -Acerto? Deu prazo? Cheque pré? -Não, ela possuía uma coleção de santos, onze imagens lindas, então recebi por conta. -Mesmo? Você é corajoso. -Quero até mostrar a você e a Inês. Vou me desfazer de algumas e talvez sirva para seu apartamento novo. Os arquitetos agora gostam de mesclar antigo com moderno. -O quê? Você agora está entendendo de decoração de interiores também? Não basta conhecer o interior dos pacientes? –Perguntou Almeida sorrindo. -Pois é. O que sei é que combinei com Norma vender quase todas e ficar apenas com uma ou duas. -Quantas imagens entraram no negócio? -Onze. -Onze? Puxa, foi uma bela troca. Quando quiser vou lá com Inês para olhar. -Eu lhe digo o dia. –completou doutor Hugo sem mencionar que estava fazendo as avaliações. Despediram-se efusivamente, como sempre. Jaconias Almeida era um gozador inclemente. Já havia pregado inúmeras peças no taciturno doutor Hugo e sempre que havia uma chance, divertia-se com os colegas tirando um sarro solene de Hugo Napolitano. Claro que ele iria aproveitar este negócio dos santos para pregar mais uma peça no colega. No restaurante do hospital encontrou logo com Sinval e Paulo. E como não era caixa de segredos, tratou logo de contar o que havia acontecido com Napolitano. -E o que vamos fazer desta vez? –Perguntou Ranieri. -Estou pensando –disse Almeida. –Mas já tenho uma ideia. Este comércio de santos barrocos hoje é muito visado. Há órgãos de governo encarregados de fiscalizar e acionar a polícia. Mas não devemos chegar a tanto. Depois eu digo a vocês o que vamos fazer. Aguardem. Napolitano precisa de adrenalina pra viver. Vou providenciá-la! Levantou-se despedindo-se dos outros. Precisava falar com Sergio Lago para articular a brincadeira. No dia seguinte voltaram a encontrar-se os quatro no restaurante: Almeida, Sergio, Paulo e Sinval. -E então –perguntou Paulo a Jaconias –o que bolou? -Ele vai chamar Sinval e a mim para ver as imagens porque ele sabe que estamos fazendo novos apartamentos. Depois que virmos, no dia seguinte, vou ligar e dizer a ele que a polícia Federal está atrás de uns santos furtados de igrejas do recôncavo. E que por isso eu não me sinto à vontade para fazer negócio com ele. -Humm –começou Sergio –para ser perfeito era bom se tivéssemos alguma notícia de jornal. Para dar mais impacto ao caso. -Ora –disse Almeida – estou tratando do editor chefe do Jornal da Manhã, Leopoldo Cruz. Posso dizer que estive com ele e que meu paciente, sem que nem pra quê, mencionou o negócio do furto. -Então está combinado, vamos aguardar. Quinze dias depois doutor Hugo havia terminado as avaliações. Se negociasse pelo valor mínimo, ainda conseguiria o dobro do que teria recebido de honorários em dinheiro. Foi um belíssimo negócio. Dona Guiomar bem que poderia ter vendido as imagens, pago o atendimento e ter ficado com o troco. Saberá Deus porque ela preferiu passar os santos adiante. -Almeida, querido –disse solene ao telefone doutor Hugo –Já podemos apresentar a coleção. Que dia querem ver? -Esta semana. Estou ansioso. Que tal sexta-feira à noite? –Indagou Almeida. -Perfeito. Tomamos uns drinques em casa, vemos a coleção e depois podemos sair os quatro para jantar. -Esplêndido, está combinado. Depois que Jaconias Almeida viu a coleção em companhia de Inês, ficou entusiasmado. Escolheu logo dois e fecharam negócio. Na semana seguinte foi a vez de Sergio Lago que escolheu um. No dia seguinte veio Ranieri que, guloso adquiriu o grande São José de Botas. Só com estes negócios os honorários já estavam liquidados. Daí em diante era tudo lucro. Então foi a vez do trote. -Napolitano –chamou Almeida ao telefone –estamos com um problema. -De que ordem? –Perguntou o colega. -Prefiro falar pessoalmente. E rápido. É coisa séria. -Estou indo ao Américas agora. Vamos nos encontrar lá. -Vou estar no lobby lhe esperando. Pronto. O golpe estava dado. Doutor Hugo não cabia em si de ansiedade. O que será que o Almeida queria com ele? Assunto médico ele falaria ao telefone. Só podia ser alguma coisa com os santos. Tratou logo de ir ao hospital resolver o assunto. Quando estacionou o BMW na vaga e saltou, viu Ranieri andando para o saguão. Apressou o passo, mas só o alcançou depois das portas automáticas de vidro. Lá já estavam os dois conversando, Almeida e Ranieri. -Napolitano, você veio rápido! –Disse Almeida. -Moro aqui perto, quase dá pra vir a pé! -Foi ótimo o Ranieri estar aqui também porque o assunto diz respeito a nós três. -Pode falar –ordenou Hugo –qual é o caso? -O caso é que ontem atendi o Leopoldo Cruz que está convalescendo em sua casa, colocou dois stents. Ele está bem, mas não há jeito de parar de trabalhar. Mesmo em casa ele revisa o que vai ser publicado, o homem é um monstro. E o que tem a ver? –Quis saber Napolitano. -É que há uma ordem de busca de imagens roubadas. Polícia Federal! -Ora seu Almeida –disse convencido o doutor Hugo –na Bahia a toda hora há notícias de imagens roubadas. Estas eram de um colecionador de Feira de Santana. Tem origem. Tratei direto com a viúva. Não há risco! -Concordo –disse Jaconias –O problema que achei coincidência demais foi a quantidade: onze! -Realmente é uma grande coincidência –argumentou Ranieri –Mas coincidência é isso mesmo. Doutor Hugo saiu do encontro no mínimo abalado. Foi para o consultório e, já noite, entrou em casa. -Norma, querida –foi dizendo ele –providencie gelo. Vou tomar umas duas doses de whisky para me acalmar. E contou a conversa que tivera com Ranieri e Almeida. Sergio e Paulo, a par da situação, na primeira oportunidade que encontraram com Hugo tiraram um sarro: -Rapaz, este negócio de santo roubado... -Deixe disso, Sergio –alertou doutor Hugo –os que recebi nada tem de roubados. Mais uns dias se passaram, os amigos todos pirraçando o pobre do colega. Cada dia contavam uma novidade. Com isso doutor Hugo ficou temerosos de oferecer as outras imagens ao arquiteto Marcio Quirinali. E dona Norma nada disse a Rosângela. Resolveram deixar a poeira baixar. Vai que é verdade –pensava apreensivo doutor Hugo. Mais de dois meses depois do episódio, a conversa já se dissipando, Jaconias já tendo confessado que tinha sido uma troça, doutor Hugo a fim de oferecer as demais imagens aos outros pretensos candidatos, irado por causa da brincadeira de mau gosto, dos colegas, quando num domingo à noite o telefone da casa de Jaconias Almeida toca. Era Irineu, mordomo da casa de Leopoldo Cruz. Ele precisava de atendimento médico urgente. Estava com muita sudorese, uma dor pré cordial –talvez uma angina –meteu-se a diagnosticar o empregado. Jaconias não se fez de rogado. Pegou o carro e rumou para a casa do paciente, um casarão antigo, um dos remanescentes no Corredor da Vitória. Estacionou o automóvel embaixo de um belíssimo oitizeiro. Saltou e depois de contornar o carro e atravessar a calçada de pedra portuguesas, puxou a corda que tocava um belo sino de bronze. O empregado bem trajado veio abrir o portão. No hall de entrada uma mesinha com as matrizes do jornal do dia seguinte. E do lado uma pilha menor de papéis envoltos em plástico. Nada passou desapercebido a Jaconias, mesmo porque ter notícias antes de serem publicadas não deixava de ser um privilégio. Doutor Leopoldo estava deitado na imensa cama de cabeceira e pezeira de jacarandá, de época, possivelmente Dom José, sob lençóis de linho bordados, tudo no capricho. -E então –cumprimentou o médico –o que houve? -Doutor Jaconias, depois da ceia comecei a me sentir mal. Já engoli um Isordil, por precaução. –Disse o paciente como a se explicar. -Isto não deve ser nada. Deixe-me auscultá-lo. O médico examinou o paciente de tradicional família baiana, a quem tinha cabido o cargo máximo da editoria do jornal. Depois de examinar o paciente bem criteriosamente, como era seu feitio, chegou a conclusão que não havia sido nada, apena um susto, resultado de algum estresse. -Doutor Leopoldo, houve alguma coisa a mais no jornal hoje? -Apenas uma decisão séria que vou precisar tomar de hoje para amanhã e se decidir pela publicação, sairá na terça. -Algo assim tão relevante? –Quis saber o médico. -Nada que nos diga respeito diretamente. Mas a notícia já está pronta com manchete e tudo. É sobre o roubo de umas imagens de igrejas do recôncavo. -E já descobriram os autores? -Os autores ainda não, são peixes miúdos. Mas já se sabe do receptador. Por azar o camarada morreu ultimamente aqui em Salvador. Era cardíaco! Foi então a vez do doutor Jaconias passar mal. Respirou fundo, fez que não tinha entendido. Agora sim, estariam todos envolvidos, sem choro nem vela. Roubar igrejas era crime de furto mas comprar objeto de roubo, praticar receptação era inafiançável! E agora? E a coincidência da brincadeira? Que já não era uma brincadeira? Mas podia não ser o mesmo caso, morre-se de coração à toa. Quem sabe o receptador não seria outro –ah! Meu Deus –pensou Jaconias –quanta dúvida! -Doutor Leopoldo –falou quase balbuciando o médico –Já que a matéria está pronta, será que o senhor poderia me mostrar? Minha curiosidade é que tenho muitos amigos neste meio artístico e cultural e de repente, posso até ajudar, quem sabe? -Claro. Faça o seguinte. –Disse o jornalista –Não quero lhe prender mais devido ao avançado da hora. Há uma mesa de jogo ao lado da porta de saída. Quando Irineu for lhe levar à porta, você pega a prova e lê. Está tudo lá. Na pilha menor de papéis. Jaconias Almeida despediu-se do paciente e desceu os degraus de mármore rosa da escada circular. Passou por um hall seguido do mordomo Irineu, e alcançou a mesinha. O lustre de cristal de Baccarat estava todo aceso iluminando o ambiente em demasia. Ele pegou o saco plástico menor e retirou de dentro as provas da edição de terça-feira. Estava tudo lá. Onze santos, Francisco Quirino, Guiomar, comerciante, Polícia Federal, o nome do delegado que estava investigando, notícia de meia primeira página e dentro mais uma página inteira. Passou com cuidado a vista em tudo. Nada dos nomes dos médicos. Pelo menos este alívio, mas precisava falar urgentemente com Hugo Napolitano. Olhou para seu Rolex conferindo o horário. Quase onze da noite. Até chegar na casa do outro, mais meia hora. E o prazo estava correndo. Ele precisava barrar tudo antes, abafar a notícia, o escândalo. O que fazer? Foi quase correndo até o carro, entrou e acionou o motor potente do Fusion, carrão americano bem de seu jeito. Partiu para casa, precisava dividir isto com Inês. Uma brincadeira que se tornava verdade. Como pode? No meio do caminho resolveu ir logo conversar com Napolitano. Pegou a avenida larga, deserta àquela hora e uns minutos depois embicou o carrão na portaria que tinha uma guarita ao lado. Cumprimentou o porteiro e pediu que o anunciasse ao doutor Hugo Napolitano. Mais alguns momentos e o portão se abriu. -Pode subir, ele está à sua espera –informou o porteiro. Quando o elevador parou no andar e Jaconias saltou, doutor Hugo já estava de robe esperando na porta do apartamento. -O que houve, Almeida? Você aqui a esta hora! -Vou entrar e sentar para conversarmos melhor. A porta do amplo apartamento foi fechada. -E então? Problema com algum paciente? –Perguntou doutor Hugo. -Não. Pior do que problema com paciente –respondeu Almeida. -Como assim? Problema em casa com Inês? Ou com algum dos meninos? -Não, Napolitano. Nem sei por onde começar. Podemos tomar um scotch? -Claro, se lhe acalma. Vou providenciar o gelo. Visita e whisky a meia noite de domingo, é porque o assunto é sério mesmo! –Disse doutor Hugo indo em direção à cozinha. Quando voltou foi com o balde de gelo. Num armário antigo que fazia as vezes de bar, o dono da casa pegou um litro de Johnny Walker Black e dois copos longos e finos de cristal, limpíssimos e transparentes. Colocou o gelo e o whisky como eles gostavam: on the rocks. Serviu o amigo e sentou-se na cadeira ao lado. -Pronto. Às suas ordens. -É sobre os santos. –Começou Jaconias -O que há com os santos? Não ficaram bem? A decoradora não gostou? Não há problema, devolvo o dinheiro na hora! -Nada disso. Você sabe que eu trato o doutor Leopoldo Cruz? -Claro que sei. Você é o médico das estrelas e dos estrelados –disse sorrindo doutor Hugo. -É, mas hoje fui atendê-lo em sua casa. Depois dos stents, teve um estresse por conta de uma notícia que vai sair na primeira página do jornal de terça feira. -Sim, e nós com isso? Ele vai lhe processar por erro médico? -Napolitano –falou meio contrariado Jaconias –lembra que eu lhe disse que os santos eram roubados? -Claro, mais uma brincadeirinha de mau gosto. Já estou acostumado. -Mas são roubados! –Explodiu o sempre calmo Jaconias Almeida. -Não é possível! Isto faz parte da pantomima? Sergio está por trás disso também? Ou é ideia de Ranieri querendo prolongar a brincadeira porque comprou o santo maior e mais caro? -Napolitano, preste atenção. Antes de tudo, somos amigos há muitos anos. Fazemos estas brincadeiras de vez em quando pra mexer com você, lhe relaxar um pouco, quebrar o gelo de sua seriedade excessiva. Mas desta vez, a coisa é séria! E contou ao amigo os pormenores da notícia obtidos em casa de Leopoldo Cruz. Hugo Napolitano estava pasmo. Sua cor oscilava do branco pálido para o vermelho quase roxo. -Aquela filha da puta me engabelou –exclamou Hugo Napolitano. –E ainda me tomou recibo. Já sabem que foi ela? -Sabem que o marido dela é o receptor. E que ele morreu. Mas estão na pista. -Vou ligar pro governador! –Declarou Napolitano. -Pra quê? Pra botar mais lenha na fogueira! -O que vamos fazer? -Creio que a melhor maneira é amanhã visitarmos Leopoldo Cruz. Ele além de jornalista é bacharel e poderá nos aconselhar. Amanhã ele vai para o jornal, já o liberei, ele está de alta. -Então podemos ir cedo à casa dele, o que acha? -Vamos. Passo aqui amanhã às sete da manhã –concluiu Jaconias entornando o último gole de whisky –Ele saberá nos orientar. Depois que Almeida foi embora, no quarto Hugo contou tudo à Norma. A noite foi péssima, mal dormida e preocupada, mas amanhã eles dariam um jeito. Depois de pegar Napolitano embaixo do prédio antes de sete horas, foram os dois para a casa do jornalista. Irineu atendeu ao portão e os fez entrar. -Doutor Leopoldo está tomando café –informou o empregado, sem ser perguntado. Nem isto tivemos a chance de fazer –pensou Jaconias. Doutor Leopoldo estava terminando o café quando Irineu anunciou as visitas. -Deu formiga na cama, doutor Jaconias? –Indagou o dono da casa. -Bom dia. O senhor conhece doutor Hugo Napolitano? –Perguntou Almeida. -Claro que sim! Quem não conhece a figura ímpar de Hugo Napolitano? Ele até já colaborou com o jornal escrevendo uma coluna médica na época do doutor Cooper. Lembra? -Foi uma bela época –aquiesceu Hugo Napolitano –Era moda praticar o jogging, todo mundo andava pelas calçadas por recomendação do método. Tornou-se até um vocábulo na língua portuguesa, um substantivo. Praticar Cooper! -E então, vamos ter uma conferência médica aqui logo cedo? –Quis saber o jornalista. -Não –respondeu Jaconias –mas precisamos falar em particular. -Então vamos para meu gabinete. Lá teremos café preto e sossego. Doutor Leopoldo afastou a cadeira puxada por Irineu e encaminhou-se em direção à frente do casarão seguido pelos dois médicos. Entraram e sentaram-se. Irineu serviu café em xícaras pequenas, adoçou, pediu licença e saiu fechando a porta. Jaconias tomou a palavra e foi contando a história dos santos sempre complementada pelo doutor Hugo. Como bom jornalista, doutor Leopoldo ouvia sem esboçar qualquer reação. Quando a narrativa foi concluída ele disse: -Só há uma maneira de abafar o caso. Devolvendo as imagens. Posso ligar para o delgado, pedir que ele venha se encontrar comigo. Conto todo o acontecido e espero que ele tenha bom senso de engavetar o processo. Algum dos senhores tem notícia da viúva? -Não, senhor –Respondeu Napolitano. -Então vamos fazer assim que dará certo. Assim foi feito. As imagens retornaram para a casa de Hugo Napolitano onde foram embaladas. Ele mandou colocá-las em seu automóvel e marcou um local para entregar ao delegado. Devolveu o dinheiro pago pelos colegas sob protestos, ninguém queria receber, mas ele fez questão. O caso foi encerrado e doutor Leopoldo abortou a capa do jornal com a notícia. Meses depois dona Guiomar foi presa e tentou incriminar Hugo Napolitano apresentando o recibo que o delegado fez questão de confiscar e devolver ao médico que no fim foi a grande vítima.



 
 
 

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