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Rancor Este conto fará parte da coletânea Tatuapara-A natureza humana

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 21 de abr. de 2021
  • 7 min de leitura

Rancor

​​Ticiano Leony

​A conversa entre os dois amigos de muitos anos corria solta e natural aos olhos da esposa do anfitrião, do filho e do motorista do hóspede.

​Quase tudo havia sido esclarecido e resolvido, inclusive uma velha conta do passado que acabava de ser paga, liquidada.

-Mas o que houve que você precisou fechar a loja e se mudar? Praticamente viver escondido sob esquemas de segurança a ponto de sequer fornecer seu endereço ou telefone?

-Você lembra como era a loja?

-Claro que lembro! E como lembro também de sua casa. Os móveis de época franceses, venezianos, napoleônicos...

-Pois bem. Curiosamente, na semana seguinte à que você esteve comigo quando levou as peças para experimentar, depois que lhe informei os valores e você achou caro, eu estava sozinho no escritório da loja. A porta estava aberta à meia altura, pois se alguém quisesse me ver, chamaria e eu iria levantar a porta. Por outro lado, se alguém abrisse, eu ouviria.

-O que aconteceu então?

-Três indivíduos entraram por baixo da porta entreaberta. Uma vez dentro, eles baixaram a porta. Do escritório, tive a sensação que a porta havia sido toda aberta, o que em si não constituiria problema algum. Imaginei que alguém alto que quisesse entrar para falar comigo, havia levantado a porta. Mas não foi o que aconteceu. Eles entraram se abaixando e uma vez dentro, fecharam a porta. A loja ficou no escuro porque os basculantes laterais não são suficientes para clarear a loja toda.

-Sei bem como é.

-Levantei-me da poltrona e da porta do escritório indaguei: “quem está aí?” –Eu tinha esperança que fosse apenas uma brincadeira de gaiatos que vez por outra passam e abaixam a porta. Então tinha que ir abrir. Mas naquele dia, quando chamei, os três indivíduos se apresentaram a mim. Dois com armas de fogo, o outro com uma peixeira grande. –O que vocês querem? Nada tenho aqui.

​Um deles disse:

-Já vai começar a mentir? Claro que você tem muita coisa aqui! Tem ouro e pedras preciosas, prata, dinheiro e muita moeda.

-Engano seu! –Eu disse –Sou comerciante de móveis. Tudo que tenho vocês estão vendo aí.

-E o cofre? Onde fica o cofre? –Perguntou o mais mal-encarado deles. Nesta hora tive certeza que seria morto. Como nos começos de todas as manhãs na loja, eu tinha hábito de ler os jornais de cabo a rabo e acabava lendo as páginas policiais. Quando ele indagou pelo cofre, eu imediatamente o identifiquei. Era o Pranchinha, um estuprador temido aqui e nas cidades vizinhas. Do tipo mau que depois que comia, matava com requintes de crueldade.

​Como ainda insistissem aos gritos e eu continuasse negando, me empurraram. Caí sentado em minha cadeira do escritório. Fui amarrado com fita e começaram a me espancar. Um deles perguntou por Margarida e por Maria Izabel. Eu lhes disse que não morava mais ninguém, mas eles sabiam de tudo. Na certa andavam me espionando. O Pranchinha me perguntou pela chave da porta que dava acesso à escada. Na hora a chave estava na minha cintura, como sempre esteve, não sei se vocês lembram...

-Eu não lembro! –Respondeu uma das visitas.

-Então me soltaram da poltrona cortando a fita adesiva com a peixeira e me levaram até a frente do salão. Levantaram a porta, a claridade tomou conta do ambiente e todos ficamos sem enxergar. Um deles apontou para meu cinto e disse:

-Olhem a penca de chave aí! Deve de ser uma destas.

​-Mas eu fui mais rápido! Tirei a penca da passadeira do cinto e, com toda força que Deus me deu, arremessei em direção ao outro lado da estrada ainda sem enxergar direito. A penca não chegou lá, mas caiu pelo meio da montanha de tralhas que ficava em frente à loja, lembram?

-Lembramos! –Responderam as visitas.

-Pois é. Um lugar inaccessível. Um deles, que depois descobri que se chamava Roliço, foi para cima das madeiras tentar resgatar a penca com as chaves. Baixaram a porta. Pranchinha e o outro, um tal de Meia-Faca, me levaram de volta para o escritório puxado pelo braço e empurrado brutalmente. No escritório começaram a me bater e a me ameaçar. Eu pensava, não se bate na cara de um homem, se Deus permitir, isto não ficará assim. Estes cortes aqui foram feitos pelo tal do Meia-Faca, com a peixeira, a sangue frio. Senti o sangue quente escorrer pelo meu queixo. Eles perguntavam pelas mulheres. Pranchinha falava cada miséria de arrepiar. Cada vez que ele ameaçava, Deus me dava mais forças para resistir e defender Margarida e Maria Izabel. Espancaram-me até a hora que Roliço voltou todo arranhado dizendo ser impossível achar a penca de chaves. Recomeçaram a me bater até que desmaiei, perdi os sentidos e caí no chão. Daí em diante, nada mais recordo. Mas Maria Izabel contou que quando deu quatro horas da tarde e eu não subia para almoçar, ela pegou o telefone e ligou. Obviamente não atendi. Ela então pegou a chave interna, abriu a porta e a grade e desceu. Correu grande perigo porque eles ainda poderiam estar lá de tocaia. Deus ajudou que tinham perdido a paciência e ido embora. Elas então abriram a porta de fora e depois a da loja que estava destrancada e arriada. Margarida entrou primeiro e Maria Izabel depois. Encontraram-me no escritório desmaiado numa poça de sangue.

​-Elas providenciaram todo o atendimento. Fiquei uma semana em coma. Os médicos achavam que não sobreviveria. O meu fígado foi desmantelado de pancada, tive costelas quebradas, perdi todos os dentes da frente, tomei estes dois cortes –disse apontando para o rosto – poderia ter perdido a visão e ter ficado desfigurado para sempre como fiquei logo depois da covardia. Aliás, perdi a audição por uns seis meses, acham que foi efeito de tanto medicamento ante inflamatório.

-Puxa, mas felizmente conseguiu se safar!

-A duras penas. Quando me recuperei, depois de quatro meses de hospital, já não voltamos pra lá. Comprei este imóvel recém construído. Como é andar baixo, estava por um preço bem accessível. Todo mundo quer morar perto do céu, mas eu quis ficar bem perto do chão.

-E a polícia?

-Vocês vão saber porque são meus amigos do peito. O tal do Pranchinha é de Arapiraca, aí das Alagoas. Sujeitinho perigoso. Identifiquei os três para a polícia. Então, um sobrinho de Maria Izabel que é sargento da Polícia Militar, me procurou e me preveniu que de nada adiantaria mandar prender os três.

-A polícia prende, a justiça solta! –Disse ele. –E quando solta, vão atrás de quem mandou prender.

-Como faço? Isto não vai ficar assim. –Retruquei.

-É preciso um plano –disse ele.

​Peguei um dos quartos deste apartamento e montei um QG de caça aos bandidos. Contratei olheiros nas Alagoas, em Pernambuco e até na Bahia e no Ceará. Passei a monitorar os três. Colecionava páginas policiais de jornais e num mapa do Nordeste fui assinalando por onde andavam. Consegui levantar a vida pessoal de cada um deles. Vocês acreditam que o Pranchinha, mesmo sendo o estuprador que era, tinha família? Tinha mulher e filha? E ainda tinha mãe?

-Se você está contando o caso usando o verbo no passado...

-Isto mesmo. Não me acanho em dizer. Se só quisessem roubar, eu trabalharia e ganharia tudo de novo, mas eles queriam torturar, estuprar e matar. O que fizeram comigo e o que teriam feito a Margarida e Maria Izabel...nem me permito imaginar. Tracei um plano de vingança. Não apenas pra mim, mas pra vingar todos aqueles que um dia eles haviam prejudicado. Consegui fazer uma relação das vítimas, talvez incompleta porque muitas que foram abusadas não prestaram queixa, mas as que compareceram à Polícia, todas foram vingadas. Conto mais adiante sobre isto. Era preciso fazer com que sofressem na carne o mesmo que já haviam feito outros sofrerem. Contratei os assassinos a soldo para começarem a vendeta. Eram de Campina Grande, Caruaru e Aracati. Pelo meu plano, quem primeiro foi morta foi a mãe de Pranchinha. Era preciso erradicar o mal pela raiz, começar por aquela que gerou o monstro. Depois de mortas as vítimas, eu fazia questão da ida do Sargento ao sepultamento. Fosse onde fosse. Ele ia e depois me ligava contando a reação de cada um. Eu então escrevia uma carta pra Pranchinha e mandava botar no correio com o endereço dele em Arapiraca. Ele soube antes de todos que seriam mortos e eu dizia: –Não adianta fugir, vou lhe buscar em qualquer lugar. –E continuou narrando a vingança no mesmo fôlego, até com certa dose de entusiasmo. –Depois mandei para o céu o pai e a mãe de Roliço e a mãe de Meia-Faca. Todos três sentiram a perda das mães. Mas ainda era pouco. Então foi sacrificada a filha de Pranchinha. Nem adianta perguntar se tive pena, porque adianto que não tive...Osoutros dois não tinham família. Então descobri, pela presença das pessoas nos cemitérios, as irmãs. Todas foram eliminadas. Chegou ao ponto de Pranchinha mandar pedir pelo serviço de alto-falante da feira de Caruaru, que deixassem o resto da família dele em paz. Mas não deixei. Teve três pais de moças abusadas por ele que mandaram dizer pelo repórter Danilo Veiga do Jornal Estado de Sergipe, que estariam dispostos a ajudar na vingança com dinheiro. Todo mundo já desconfiava que tantas mortes violentas ligadas entre si ao bando de Pranchinha, só podia ser vingança.

-Chegou a matar os três que lhe espancaram?

-Claro, ou o serviço não teria sido bem feito. Primeiro foi Meia-Faca morto a golpes de peixeira. Quem fez o serviço me disse que ele sangrou até esfriar. Sem direito a golpe de misericórdia. Depois que ele foi enterrado, foi a vez de Roliço que já tinha perdido o pai, a mãe, as irmãs e os irmãos e estava sozinho no mundo. Ele foi pendurado pelo pescoço, mas sem ser enforcado, de cima da ponte entre Propriá e Colégio. Era um fio de nylon grosso que não quebrasse, mas fino que não desse pra ninguém puxar de cima. Ele ficou lá na agonia mais de três horas de relógio, o povo olhando de cima, até que o fio quebrou e ele se despedaçou embaixo nas pedras da fundação da ponte. Aí só faltava Pranchinha. Os meninos de Aracati o pegaram em Juazeiro do Norte. Levaram para um descampado e bateram nele, nu em pelo, com umas vergas curadas de boi, até arrancar a pele e ficar o corpo em carne viva. Puxaram o corpo ensanguentado pra de baixo de umas árvores onde tinha uma nascente de um córrego. Do lado tinha um formigueiro. A recomendação foi para que só saíssem da beira quando fosse constatada a morte. Ele durou quatro dias até ser dado por morto. Enterraram o corpo até a cintura, como indigente, porque não teve como identificar.

​As visitas estavam lívidas, assombradas com a tal vingança. O rancor do homem desonrado foi tamanho que ele engendrou um conjunto de crimes bárbaros, cada um pior do que o outro.

​Já era quase noite quando foram embora, deixando para trás um homem vencido pelo rancor, derrotado pela vingança, apavorado e temeroso de que algum dia algum sobrevivente desconhecido e mais rancoroso do que ele, aparecesse para dar o troco.

 
 
 

1 comentário


Andrea Andrade Sauer
Andrea Andrade Sauer
22 de abr. de 2021

Forte. “Olho por olho, dente por dente”. Esse tipo de justiça talvez tenha atendido a necessidade da vítima temporariamente...A dor, no entanto, continuará dentro dele com muitas indagações porque não houve a possibilidade de restauração, de cura do trauma . Sem dúvida, os autores teriam merecido a prisão mas e os familiares? Enfim, cada cabeça uma sentença .

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