Chinfrim
- Ticiano Leony
- 5 de dez. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 8 de dez. de 2020
Chinfrim, o sariguê
-Mas é claro –dizia o Sapo General à pequena Rafinha –Se ele conseguiu dar vida a mim, quem dirá a um sariguê!
Este foi o meio da conversa que aqueles dois estavam tendo naquele fim de tarde de domingo modorrento na Praia do Forte. O caso era saber se “ele”, o avô de Rafinha, se interessaria em dar vida a um reles sariguê, feio como ele só. O sapo refestelado na espreguiçadeira na parte rasa da piscina da casa dos avós da menina e ela, atenta, acocorada na borda, enquanto todos em casa faziam a merecida sesta, que segunda-feira é dia de muito trabalho.
-Você acha que ele vai se interessar pelo sariguê? –Perguntou Rafinha.
-Pode ser que se interesse. Aqui na casa dele ninguém pode maltratar qualquer destes bichos.
-Por que você acha que ele pode se interessar?
-Ele mesmo diz que o sariguê é um bicho injustiçado! Às vezes é até perseguido como um animal peçonhento e nocivo, mas ele é apenas feio e inofensivo –disse o General.
-Feio como os sapos! –Falou Rafinha com um certo tom de ironia.
-Mas os sapos também são perseguidos e temidos. Tem gente que tem medo de sapos. Então nós também somos injustiçados. –Argumentou o General.
-Só o que causa as doenças e tem veneno são os insetos: muriçoca, mosquito, carrapato, mosca, escorpião, aranha, barata...odeio barata! Inseto não presta!
-Não generalize, Rafinha. Há insetos, como as abelhas e as vespas, sem os quais a gente nem sobreviveria. Elas que polinizam as flores das plantas e as fazem produzir quase tudo que os outros bichos, inclusive os humanos, consomem, de vegetais até as árvores com as quais constroem as casas.
-General, você sabe muita coisa da natureza.
-É que eu sou o tal! –Concluiu o General.
-O que os sariguês comem?
-Você sabe que o sariguê é um papa insetos, não tão eficiente quanto eu, porque o pobrezinho só sai à noite.
-O que ele come mais?
-Ele como de um tudo. Desde pequenos animais, ovos dos pássaros e até insetos e pequenas cobras. Como come pequenos frutos, ele espalha as sementes pela mata. Ele é onívoro.
-Se ele come de um tudo, poderia sair de dia e de noite.
-Mas só sai de noite e de dia ele fica escondido em tocas escuras que eles mesmos cavam ou então em outros lugares com pouca claridade como embaixo dos decks das piscinas! –Disse o senhor sapo.
-Por que?
-Porque ele não enxerga de dia. A luz do sol encandeia sua visão.
-Ele parece um rato!
-Não diga isto, Rafinha! Os ratos são roedores, são animais nocivos, destroem as colheitas, arrasam com tudo e são ligeiros. Os sariguês são marsupiais, andam lentamente e não fazem mal a ninguém.
-Como são os marsupiais?
-São os mamíferos que carregam os filhotes numa bolsa que fica na barriga. Como os cangurus e os koalas.
-A natureza é difícil de ser compreendida!
Então escureceu sob a frondosa amendoeira. O sapo General saiu da piscina.
-Onde você vai?
-Vou para a varanda. Já, já acendem as lâmpadas e começam a chegar mosquitos e besouros atraídos pela luz. E eu estou com fome, sabia?
Neste instante perceberam um barulho de folhas secas da amendoeira sendo remexidas. A menina, esperta como ela só, imediatamente se virou. Era o sariguê.
-Ei, você! –Gritou ela.
Mas o sariguê enxergava tudo embaçado e, apenas pela voz, não conseguiu distinguir quem chamava por ele. Continuou a tatear sobre o tapete de folhas coloridas enquanto farejava algum alimento com seu focinho pontudo.
Rafinha estava curiosa com o comportamento do sariguê, que a cada pequeno passo se aproximava mais dela. Até que ele parou e a encarou. Pressentiu algum perigo e fez menção de voltar.
-Peraí! –Disse ela. –Onde vai assim nesta pressa?
-Não confio em humanos. –Respondeu o sariguê.
-Mas nela você pode confiar! –Falou o sapo General já se encaminhando para a varanda.
-Quem garante?
-Eu garanto! –Exclamou o senhor sapo.
-Sua garantia de nada vale! Não é você que os humanos matam, sangram, estripam, moqueiam e comem! Quanto a mim, se eu facilitar, vou para a panela. –Resmungou o sariguê.
-Como é seu nome? –Quis saber Rafinha.
-Não tenho nome, mas carrego um apelido que não gosto. Tanto que várias vezes desejei que tivessem me ignorado. Tenho um apelido desprezível!
-Quem colocou seu apelido?
-Vou contar a minha história –o sariguê olhou para o alto farejando o ar, já que o sol não mais iluminava a terra. –Agora que escureceu, estou enxergando melhor.
-Olhe –emendou o sapo General –veja o que vai dizer nesta história. Ela é apenas uma criança e você já falou de coisas horripilantes: moquear, estripar, coisas inadequadas para a idade dela.
-...porque com você nada acontece de tão grave. –Retrucou o sariguê.
-Acontece sim. E é coisa muito séria. Jogam sal em nossas costas. É uma dor insuportável, tão dolorida que morremos sem a nossa pele, ficamos em carne viva, escalpelados! É pior do que queimadura.
-Esta que é uma conversa feia! –Disse Rafinha.
-Ah! É senhorita? Quer dizer que me caçarem para virar guisado, não é feio? –Tornou a retrucar o sariguê.
O sapo General e Rafinha riram.
-Finalmente, como é seu nome?
-Vejam bem. Eu estava num grupo de cinco, caminhando à toa lá na mata da Sapiranga. Cada um procurando sua janta. Pois vocês acreditam que havia armadilhas colocadas por uns caçadores? Pegaram a gente de jeito. Os caçadores estavam com umas lanternas brilhantes como a luz do sol. Ficamos sem enxergar. Pegaram os três maiores e soltaram a mim e a outro maior do que eu, mas que estava arranhado pelo ferro da armadilha. Então um caçador disse ao outro: –Vou soltar este aqui que é chinfrim. –Resultado, o outro que foi solto comigo porque estava machucado, chegou na toca contando que três de nós haviam sido caçados e que não me quiseram porque eu era chinfrim. Aí o nome pegou e até hoje sou Chinfrim.
Rafinha deu muita risada com a história.
-‘Tá vendo, General, a história não teve nada demais.
-Teve sim, apesar dele não ter dito, os humanos mataram os irmãos dele, depois sangraram, trataram, moquearam, cozinharam e comeram!
-É a segunda vez que falam “moquear”! O que é moquear? –Perguntou Rafinha.
-É queimar os pelos para não deixar gosto na carne quando for para a panela. É o mesmo que se faz com os porcos, os tatus, as capivaras!
-Puxa, os bichos sofrem nas mãos dos humanos! Ser moqueado deve doer!
-Não dói! –Disse Chinfrim –Quando são moqueados, os bichos já estão mortos. Já não sentem mais.
-Chinfrim, quase tudo que você come, o General também come. Mesmo assim vocês não são inimigos, não disputam território.
-Hahaha! –Gargalhou o sapo. –Ele come escorpião e eu evito, dá uma agonia enorme engolir o bicho vivo. Às vezes ele ainda fica se mexendo na barriga. Prefiro mosquitos porque os pego no ar em pleno voo com a minha língua.
-O que vocês discutiam aqui? –Perguntou Chinfrim a Rafinha.
-A gente estava falando justamente dos sariguês. Para ver se meu avô escreve uma história que ajude a proteger a você e a seus irmãos como ele fez com os sapos. Se ele conseguir, vão parar de perseguir vocês só por serem feios e parecidos...
-...com os ratos –completou Chinfrim.
-...é, com os ratos... –sussurrou Rafinha.
-Espero que vocês tenham a solução para isto. Quem sabe passamos a usar máscaras como os humanos estão fazendo agora? –Concluiu o esperto sariguê.
FIM


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