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Titara, o Homero bahiense

  • Foto do escritor: Ticiano Leony
    Ticiano Leony
  • 24 de jan. de 2022
  • 6 min de leitura

​​​Titara, o Homero bahiense

​​​​​​​​​Ticiano Leony


​A professora Rosa Suely já estava na sala de aula onde ensinava História do Brasil. A meninada em alvoroço esperava o toque do sino para se aquietar e cessar a algazarra. Dali a alguns dias começaria o período de férias de meio de ano. Na Bahia e em todo o Nordeste do Brasil, este período de folga é muito valorizado por causa das alegres festas juninas. O sino finalmente tocou e fez-se silêncio imediatamente. A professora se levantou e foi para frente de sua carteira.

​Começou sua preleção depois de dar “bom dia”.

-Todos sabem que estão quase de férias. Vem aí o Santo Antônio, o São João e o São Pedro. E, logo depois a data mais importante da Bahia. Quem sabe qual é?

​Várias vozes responderam:

-O Dois de Julho!

-...que é o dia no qual se comemora...

-...a Independência da Bahia! –Vários voltaram a responder.

-Muito bem! E alguém sabe quem é o autor do hino da Bahia?

​Bem no meio da sala ouviu-se uma resposta:

-Adroaldo Ribeiro Costa...

​A Professora Rosa precisou conter o riso.

-Quem respondeu? –Perguntou ela ainda sem corrigir o mal entendido, afinal ela que formulara a questão erradamente.

​Um menino magrinho, quase franzino se levantou.

-Fui eu, Professora! –Era José Maurício.

-Adroaldo Ribeiro Costa foi autor do hino do Esporte Clube Bahia! –Corrigiu ela, enfática. –Estou perguntando quem foi o autor do poema do Hino da nossa Bahia!

​Ninguém respondeu. Ouviu-se alguns sussurros, mas nada consistente.

-Pois bem! –Disse ela –Vamos estudar hoje o Hino da Bahia, do Estado da Bahia, também conhecido como Hino ao Dois de Julho.

​E prosseguiu na sua preleção.

-Como todos sabem, um hino, ou uma música, uma modinha destas que vocês cantam por aí, é formada por um poema, que é a letra, a parte cantada e a melodia que é a parte musical, aquela tocada pelos instrumentos. No caso do hino da Bahia, o autor foi um poeta nascido no ano de 1801 em Dias d’Ávila quando ainda era uma das maiores feiras da América Portuguesa e tinha o nome de Capuame, Feira de Capuame. Portanto antes da Independência do Brasil que aconteceu em...? –Disse ela deixando a pergunta no ar.

-Sete de setembro! –Respondeu Sandrinha.

-De que ano? Quem sabe? –Perguntou a Professora.

-1822! –Respondeu a própria Sandrinha.

-Muito bem! Mas a Independência de Sete de Setembro de 1822 não estava completa. Algumas províncias como a da Bahia, Piauí, Grão Pará, Maranhão, ainda não estavam independentes. Então o Brasil só ficou completamente independente de Portugal, com a independência da Bahia que foi onde teve uma verdadeira guerra, aliás as únicas batalhas realmente sangrentas, com tiros, lutas, canhões, espadas e baionetas, soldados, generais, muitos mortos e feridos emluta armada, escaramuças e emboscadas. Nestas batalhas havia um soldado, que na época era apenas voluntário, chamado Ladislau do Espírito Santo Melo dos Santos Reis, um nome de batismo bem lusitano, vejam só! Foi ele que nasceu em Dias d’Ávila quando ainda era Feira de Capuame em 1801, freguesia de Senhor do Bonfim da Mata de São João. O pai dele era um advogado português chamado Manoel Ferreira dos Santos Reis e foi quem ensinou ao filho Ladislau, as primeiras letras. Isto era muito usual naquela época: os pais alfabetizarem os filhos e em muitos casos ainda prosseguirem no ensino, até a criança ficar mais velha, com dez e até doze, treze anos.

​Ele teve outros dois irmãos poetas, João Gualberto e Antônio Ferreira dos santos Reis, mas apenas Ladislau era filho de Isidora maria.Ladislau não quis ser advogado como o pai e seguiu a carreira militar. Assentou praça como voluntário e foi galgando as patentes. Na época da guerra da Independência ele tinha 21 anos e já eraSegundo Cadete de Artilharia. Agora vem a parte mais importante, prestem atenção como a instrução e o conhecimento ajudam o progresso das pessoas. Dom Pedro I já havia sido aclamado Imperador, mas a cidade da Bahia ainda era o reduto das tropas portuguesas que obedeciam às cortes de Lisboa. Salvador era o maior reduto deportugueses residentes. Estes portugueses estavam reticentes em aceitar a independência do Brasil. No comando da província, exercendo o cargo de Governador de Armas estava um sujeito malvado chamado Ignácio Luiz Madeira de Melo. Este português negava-se a obedecer ao Príncipe Dom Pedro. As tropas baianas se rebelaram e a guerra começou. O exército que guerreava contra os portugueses era constituído de patriotas desdefazendeiros, oficiais, voluntários das vilas do Recôncavo, até escravos libertos, negros cativos cedidos pelos senhores de engenhos, crioulos, índios e africanos. Era uma miscelânea. Então o Príncipe enviou para a Bahia um mercenário francês chamado Pierre Labatut, com a missão de organizar as forças do chamado Exército Pacificador. Mas faltavam recursos. Labatutencontrou a tropa faminta, os soldados descalços, os soldos atrasados, muitos doentes acometidos de tifo pela péssima qualidade da comida e impaludismo, endêmico na região por causa das matas, pântanos, mangues, todos tidos como terrenos insalubres. Faltavam médicos, enfermeiros, medicamentos e hospitais. Até o armamento era improvisado pelos próprios oficiais e alferes. Labatut procurou contratar mais mercenários, inclusive nas outras províncias, tanto que vieram tropas de Pernambuco, Sergipe e até do estrangeiro como o almirante inglês Thomas Cochrane. Até agora, alguém tem alguma pergunta?

​Fernandinho, sentado na primeira fila, quis saber:

-Professora, e a história do hino?

-Calma, Fernandinho, é preciso que vocês conheçam o contexto.

​E ela prosseguiu.

-Labatut, veterano de guerra, aconselhado por José Bonifácio, ministro de Dom Pedro I, se naturalizou brasileiro para dar mais legitimidade a seus atos. Muito organizado, reuniu as forças milicianas do Recôncavo e as tropas regulares da Casa da Torre. Criou a primeira Administração Central do Exército e nomeou Ladislau, oficial da Secretaria que para o Estado Maior do Exército equivalia à patente de Tenente. Ele estava incumbido de ordenar a papelada encontrada à toa, registrar em livros as ordens de serviço e a correspondência de Labatut. O Comandante dividiu o Exército Pacificador em duas brigadas: uma comandada pelo pernambucano Barros Falcão e a outra pelo mineiro Felisberto Caldeira Brant. Como secretário, Ladislau acompanhou a guerra de perto, tendo inclusive participado da célebre batalha de Pirajá, aquela que o Exército brasileiro venceu por causa do erro do Corneteiro Lopes, mas falarei deste assunto em outra ocasião.

​Então a Professora parou para respirar e tomar um gole de água. Recomeçou.

-Pois bem. As tropas brasileiras do Exército Pacificador expulsaram Madeira de Melo e as tropas portuguesas de Salvador em 2 de Julho1823. Ladislau havia registrado todos os passos das batalhas, inclusive os nomes dos combatentes, suas patentes e os feitos heroicos de cada um que esteve a seu alcance e de seu conhecimento. Considerando-se desde sempre um autêntico patriota brasileiro, Ladislau, imbuído do espírito nacionalista reinante no exército, resolveu mudar seu nome, abandonando o nome comcaracterísticas essencialmente portuguesas. Para isto escolheu o nome de uma grande palmeira autêntica do Brasil. É uma bela árvore que os índios chamavam ‘jacitara’, ‘Titara’ ou ‘urubamba’ e que produz um fruto conhecido como “coco de cigano”. Desde então se chamouLadislau dos Santos Titara, nome que passou a usar oficialmente. Embevecido pela vitória na expulsão dos lusos, em 1827 começou a escrever.Suas Obras Poéticas são compostas por oito volumes sendo Paraguassu – epopeia da guerra da Independência da Bahia, os tomos quarto e quinto, concluídos em1835 e em 1837, respectivamente. Nestes dois tomos estão narradasas batalhas e os feitos dos comandantes das brigadas, tanto a da cavalaria como a de artilhariaO texto que mistura história e ficção foi concebido a partir da participação do autor, o que lhe confere mais autenticidade. Nas notas explicativas de pé de página e ao fim de cada Canto, foram inseridas as alterações nos regimentos, nomes e cargos dos combatentes, produzindo um precioso informe histórico da guerra de 1822 a 1823. Na epopeia inspirada em Virgílio, Homero e Camões, provavelmente àquela época a única brasileira no gênero, há referências mitológicas na construção da narrativa, por vezes fantasiosa, onde há sonhos,deuses e visões e um forte traço retórico: o elogio em defesa da Pátria e o uso de colocações pejorativas quando se trata de achincalhar as forças lusas.

​Em tom de cobrança, surgiu uma pergunta:

-E o hino, professora? –Mais uma vez se impacienta Fernandinho.

-Já vou falar dele. Agora mesmo. A partir de trechos da epopeia Paraguassu, Ladislau escreveu o poema que se tornou o hino da Bahia, musicado por José dos Santos Barreto. Fernandinho, venha cá! –Chamou a professora Rosa Suely.

​O rapazinho se levantou e foi até a carteira da Professora. Sobre a mesa havia várias folhas empilhadas.

-Nestas folhas está a letra do hino. Pegue e distribua entre seus colegas. Uma para cada, hein! –Recomendou a professora entregando as cópias ao menino.

​Depois que todos estavam de posse do papel com a letra, ela colocou uma fita num gravador cassete e a música tocante se ouviu na sala. Ela mandou que todos se levantassem e cantassem o hino, seguindo a gravação. Todos estavam entusiasmados com as palavras e o significado do que escrevera Ladislau.

​A professora Rosa Suely desligou o som e falou:

-No dia Dois de Julho, onde vocês estiverem, peguem este papel e entoem esta canção. Devo acrescentar que Ladislau também escreveu “Memórias do Grande Exército Aliado Libertador do Sul da América” sobre a participação do Brasil na guerra do Paraguai. Este livro foi impresso no Rio Grande do Sul em 1852. Ele também escreveu em 1855 um livro técnico baseado em sua experiência como secretário do Exército. Em agosto de 1922 o presidente Epitácio Pessoa decretou o Hino como sendo da Independência. Que nos fique a lição do que escreveu Ladislau dos Santos Titara. Nunca mais o despotismo regerá nossas ações Com tiranos não combinam brasileiros corações!

Fontes:

Shena Virgínia Rocha de Oliveira Castro, Representações da Independência na literatura brasileira, sec. XIX/XX, São Paulo, 2019

Hendrik Kraay, Em outra coisa não falaram os pardos, cabras e crioulos, Revista Brasileira de História, 2002

Paraguassu –Epopeia da Guerra da Independência da Bahia, Ladislau dos Santos Titara, edição Comemorativa do Sesquicentenário da Independência da Bahia, São Paulo, 1973.

 
 
 

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Linda Neves, jornalista social
Linda Neves, jornalista social
25 ian. 2022

Interessante.

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