Florência & Terêncio
- Ticiano Leony
- 24 de dez. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 26 de jan. de 2022
Florência, a sucuri
Ticiano Leony
-Terêncio, a lagoa este ano não perdeu água! –Disse a enorme sucuri flutuando à flor d’água em um nado oscilante, enquanto deslocava o corpo comprido de quase oito metros, seguida de seu último pretendente.
-Mas Florência –respondeu o macho –não adianta ter esperança: com o tanto de água que estão bombeando da lagoa, em breve nem o sapo General e seus comandados vão sobreviver.
-O que podemos fazer? Algum conselho?
-Não estou com paciência para pensar agora numa solução para assunto tão complexo!
-Por que assim? Temos o tempo todo.
-Lembre-se, querida, conquistar você não foi nada fácil, havia pelo menos dez pretendentes lhe cortejando.
-É da natureza da nossa espécie, somos poliândricas. Assim os humanos nos qualificam. Aliás, muitas gostariam de ser como nós. –Respondeu Florência com uma dose de irreverência.
-É, mas havia pelo menos dez, nas suas bolas de reprodução.
-É o que dá ser disputada.
-E eu venci por ser o mais obstinado.
-Venceu, mas não fique aí todo prosa, outras estações virão.
-Eu sei. O caso agora é resolver o assunto da água. Ou não sobreviveremos.
Nadaram mais um pouco até a ilha. Havia anoitecido e as luzes da cidadezinha estavam acesas e refletiam nas águas calmas da barragem do Rio Timeantube, que se convencionou chamar “lagoa”. Nas margens da ilha havia muita vegetação de junco e taboa, além de esparsos aguapés e troncos enraizados de araticum. Era o lugar preferido deles para pernoitar. Além de haver muitos ninhos de pássaros aquáticos, mergulhões, quero-queros, carões, havia a inesperada chegada de capivaras, cotias, maracajás e quatis que se aproximavam da água para matar a sede. Naquela noite, no entanto, Florência e Terêncio estavam alimentados. Haviam dado o bote num grupo de garças e cada um pegou a sua refeição. Não era grande coisa, mas estavam alimentados por enquanto. Então era só esperar amanhecer para seguir adiante.
O receio das águas baixarem muito fazia com que eles tivessem a preocupação com o destino da lagoa.
-Estão destruindo mais e mais árvores para construírem casas e jardins. Já não se vê sequer um ipê-branco quanto mais uma amescla-de-cheiro–Disse Florência.
-Em compensação, Frutuoso, um de seus pretendentes, me disse que limparam uma grande área de charco ali do outro lado. E com as chuvas, formou-se uma grande lagoa. Lagoa de Taciano. Que tal irmos lá amanhã cedo para examinarmos o local? –Sugeriu Terêncio.
-É uma boa ideia, mas pode ser perigoso. Teremos que atravessar a estrada de pedra por onde passam muitos veículos, em especial os barulhentos.
-Mas vale à pena, pelo menos vamos saber se poderemos no futuro nos mudarmos pra lá.
-Está certo. Vamos deixar amanhecer o dia.
Enroscaram-se para passar a noite, cada qual em sua rodilha.
Assim que o sol começou a colorir o céu, Fulgência acordou Terêncio.
-Vamos?
-Não posso sair do lugar hoje. Estou em processo de digestão.
Florência observou a dilatação bem no meio de Terêncio.
-A garça lhe fez mal? Está indigesto?
-Que nada. Enquanto você ressonava, uma capivara veio beber aqui perto. Bem embaixo daquele pé de ouricuri. Não resisti. Fui lá calmamente e a peguei.
-‘Tá bom. Então vamos esperar sua digestão. Guloso! –Concluiu a sucuri.
Durante os dias que Terêncio digeriu a capivara ossuda, Florência se alimentou de alguns bichos e pequenos pássaros que nidificavam nas touceiras de taboa. Pegou uma jaçanã, um gavião-pato, algumas pererecas, uma iguana curiosa e lerda, mas dispensou suiriris e japacanins por serem muito pequeninos. Algum tempo depois, finalmente perguntou ao companheiro:
-Já jiboiou bastante, Terêncio. É hora de partirmos!
-Detesto este verbo, Florência. Ele deveria ser usado apenas em relação às jiboias. Somos sucuris.
-Taí, pois eu vejo por outro lado. Jiboiar é coisa de gente gulosa e remete à preguiça. Então os preguiçosos são associados a elas e não a nós.
-Mas no nosso caso jiboiamos por necessidade digestiva.
-Elas também, só que os humanos consideram as jiboias preguiçosas, não as sucuris.
-Deixe pra lá! –Concluiu Terêncio. –Vamos amanhã cedo.
-Vê se esta noite não engole algum cachorro-do-mato senão teremos que passar mais uma semana jiboiando aqui! –Provocou.
O dia amanheceu chuvoso e ventando muito. As palmas das taboas oscilavam ao sabor da brisa que dispersava as sementes dos pendões.
-É arriscado atravessarmos a estrada de pedra molhada. Se um monstro estiver passando, não dará tempo parar. Aí pode nos pegar. Deixa ver se o tempo estia. –Ponderou Florência.
-Tem razão, querida. Você sempre tem razão.
O tempo levantou depois do meio dia. Então resolveram partir. Nadaram em direção às comportas da barragem, esperando encontrar o local mais estreito para atravessar o caminho de pedra. Os carros e caminhões, de faróis acesos, encandeavam as sucuris enquanto aguardavam o movimento diminuir. O sol já estava baixo e nuvens ameaçavam transformarem-se em chuva torrencial. Fulgência então resolveu se lançar na aventura. Esticou-se toda e foi, seguida de Terêncio, ziguezagueando sobre os paralelos frios por que não tinha havido sol suficiente. Foi quando ela vislumbrou um gigante vindo em sua direção. Tentou aumentar a velocidade, mas a pedra lisa não permitia um maior deslocamento por falta de aderência. Quando alcançou a outra margem, Terêncio mal havia começado a travessia. O monstro então apontou os grandes olhos incandescentes em sua direção. Florência subiu o degrau para alcançar a folhagem, mas o bicho aumentou a zoeira e conseguiu chegar junto dela.
Vários humanos apareceram de repente. Terêncio a esta altura estava no meio da travessia. –Lerdo! –Pensou Florência. Nem passou por sua imaginação abraçar um deles. Ela só pensava em escapar. Os humanos gritavam e apontavam para ela pequenas luzes brilhantes. Então ela alcançou o mato e sentiu a terra fresca sob seu ventre.
-Estou livre –pensou ela enquanto ouvia Terêncio quase atrás de si.
O terreno era em declive e com a vegetação bem densa e, felizmente, escuro. Ela acomodou a visão. Ali estaria protegida. Logo Terêncio chegou exausto.
-Que sufoco! –Disse ele.
-Mas escapamos.
-Será que nos fariam mal?
-Não creio. Como havia muitos, nenhum deles ousaria nos agredir. Não sei exatamente por que, mas de uns tempos para cá eles têm nos respeitado e até protegido.
-É, mas este negócio de derrubar as árvores e o mato não nos beneficia nem aos nossos.
-Vamos ficar por aqui esta noite. –Sugeriu ela.
-‘Tá bem –concordou ele. –Assim descanso mais. Aqui está fresco, deve ser por causa do riacho que passa ali embaixo. Estou ouvindo o barulho.
Eles se enrodilharam e logo deixaram de ouvir as vozes dos humanos na estrada acima. Alguns ainda chegaram na beira do mato com seus fachos de luz, mas desistiram das duas cobras.
Quando o sol nasceu, Florência olhou em volta. Observou que havia mais barulho de água na direção da estrada. Viu que havia uma passagem sob a estrada.
-Terêncio! –Chamou ela.
Ele abriu os olhos sonolentos.
-O que foi? Estamos a salvo?
-Estamos. Mas olhe ali.
-O que?
-Tinha um buraco por baixo do caminho de pedra. Não precisava termos nos arriscado.
-Mas agora já estamos a salvo.
-Vamos, vamos conhecer esta tal de Lagoa de Taciano.
A jornada não foi fácil. Apesar de conseguirem se deslocar a uma certa velocidade na terra áspera e ainda úmida, encontraram vários obstáculos pelo caminho. Passagens de pessoas, outros caminhos de pedras, jardins com espinhos e árvores e arbustos exóticos e principalmente pessoas. Guiavam-se procurando o cheiro de água e lama, em busca do charco remanescente que outrora ocupou o lugar da nova lagoa.
Depois do périplo, finalmente encontraram o sítio ao longe. Era um enorme espelho d’água escura, plácido e sereno.
-Que tal? –Perguntou Florência.
-Parece bom, mas você está vendo que há grandes construções perto?
-Apenas por um lado. Assim teremos todo o resto para nós.
-Será um lugar calmo para você ter seus filhotes.
-Será que teremos paz?
-A princípio creio que sim. Ainda tem muito mato por aqui.
Olhando em volta viram pés de ouricuri, caxulé, aroeiras, cajueiros, bromélias, guaxuma, enquanto orquídeas de flores coloridas enfeitavam os troncos onde brotaram. Seguiram adiante e entraram nas águas tépidas da sua nova moradia. Elas haviam ocupado o novo espaço bem antes de os humanos que o construíram.
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