Érica, a tartaruga
- Ticiano Leony
- 6 de jan. de 2021
- 4 min de leitura
Érica, a tartaruga
Ticiano Leony
O verão no litoral Norte da Bahia estava apenas começando quando Érica, uma soberba tartaruga-cabeçuda, depois de três anos de aquiescência sem colocar ovos, aproximou-se mais uma vez da Praia do Forte.
Ela havia nascido exatamente ali naquele ponto da costa. Nadavam a seu lado em busca das areias tépidas, Cornélia e Raulina. Todas eram baianas, nascidas há quatro décadas exatamente ali, à sombra do soberbo coqueiral. O sol já havia descido atrás da colina de Tatuapara apenas pintando o céu azul de sombras coloridas. As ondas leves da maré alta sobre os arrecifes, ajudavam-nas a chegar mais rápido à faixa de areia alva e inclinada.
-E então! –Disse Érica –Cá estamos outra vez.
-Falta pouco –respondeu Raulina.
-Mas há algo diferente! –Exclamou Cornélia vislumbrando com seus olhos marejados de sal, uma novidade que nunca havia notado.
As três pararam onde as águas eram rasas e dava para sentirem sob as nadadeiras a areia alisada pelas ondas mansas.
-Como vamos fazer nossos ninhos? –Indagou Cornélia.
-Não tem onde nem como! –Constatou Érica. –O que faremos?
-Voltamos para o mar e procuramos outro lugar mais distante.
-Não dá! De jeito algum! Preciso colocar os ovos hoje e vocês também. –Respondeu Érica, desconsolada. –Esta praia é nossa, nascemos aqui. Há três anos nada disso havia, embora a praia já estivesse estreita. Raulina mesmo teve que colocar os ovos quase embaixo dos coqueiros, no meio das palhas. Deu certo naquela ocasião, mas agora, com este muro, será como condenarmos nossos filhotes à morte, sem qualquer escapatória.
Enquanto conversavam, escureceu por completo. Dali apreciavam as luzes elétricas na parte de dentro do muro de pedras.
-Além do que –chamou a atenção Cornélia –quando nascerem os pimpolhos, eles confundirão estas luzes com as estrelas e em vez de descerem para o mar, poderão ir na direção oposta e morrerem desidratados.
-Tenham calma! –Aconselhou Érica. –Observem que o pedaço de muro ainda é muito pequeno. Podemos chegar mais para um lado ou para o outro.
-Verdade! Então vamos nos arrastar mais um pouco para o início de onde estão colocando as pedras. –Sugeriu Raulina.
-...e para longe de onde se vê as luzes. Será a única escapatória.
As três começaram a deslocar-se numa linha oblíqua e finalmente saíram da frente do muro de pedras engaioladas. Sentiram que a areia ia ficando mais e mais fofa e morna.
-Pronto! Pode ser aqui.
Cada uma se posicionou e começou a cavar a areia seca, distante da linha da maré. Fizeram seus ninhos e começaram a despejar os ovos. Enquanto punham os ovos, trocavam ideias e experiências.
-Quem são os pais de seus filhotes? –Perguntou Raulina dirigindo-se a Cornélia com ar indiscreto.
-Ah! Isto não interessa. Todas nós temos muitos pretendentes. Estive com Nicolau, com Pablo e com Estêvão. E vocês? –Perguntou Cornélia.
-Ora! –Exclamou Érica. Isto não vem mesmo ao caso. Estou preocupada é com o nascimento dos nossos filhotes. Quando estas terras eram protegidas pelo Klaus, não havia estes abusos. Mesmo com os abnegados do Tamar, voltamos a correr perigo com tantas luzes e tantas construções.
-Já não bastam as toneladas de plástico que estes humanos jogam nos mares? Intoxicam-nos e nos iludem com o veneno. Lembram de Lavínia? –Indagou Raulina.
-O que houve com ela? –Quis saber Cornélia.
-Confundiu uma sacola plástica com uma medusa flutuante. Não desconfiou, ainda que não houvesse movimento. Comeu o saco e foi envenenada com as toxinas. Não morreu, mas até hoje não conseguiu ovos que prestassem. Temos também que enfrentar as redes de pesca. Até inventaram um tipo de rede que tem uma saída para nós, mas nem todos usam. E aí é um desastre. Muitas de nós acabamos morrendo afogadas. Imagine! Uma de nós morrer afogada.
-Vamos fazer o seguinte –disse Érica. –Ali mais embaixo tem um riacho que desemboca no mar. Lá, a faixa de areia é mais larga. Quando terminarmos vamos naquela direção. Pode ser que encontremos alguém que nos possa ajudar.
A lua estava alta no céu estrelado quando elas finalmente cobriram os ovos com areia. Começaram a se deslocar com a ajuda das nadadeiras possantes em direção ao riacho de água doce. Lá adiante Érica ouviu o coaxar de um sapo.
-Estou reconhecendo esta voz. Se for o Sapo General, vamos pedir a ele que interceda por nós.
Alguns metros adiante, na beira do remanso de águas escuras do Timeantube, Érica chamou:
-General, General!
O coaxar parou imediatamente. As águas que estavam lisas como um espelho, se moveram. Um par de grandes olhos brilhantes aproximou-se delas.
-Quem me chama? –Perguntou o sapo de dentro d’água.
-Sou eu, General. Érica, a tartaruga, lembra de mim?
-Oh! Então voltaste?
-Sim, General. Eu e minhas amigas Raulina e Cornélia. Acabamos de fazer nossos ninhos, mas quase sucede uma tragédia!
-O que aconteceu? –Perguntou o sapo General.
-Estão construindo um muro de pedras na praia...
-Ah! Aquilo foi um absurdo. Mas não se preocupem.
-Como não? –Perguntou Cornélia.
-A construção foi paralisada e será desfeita. O muro não será levantado.
-O senhor garante? –Indagou Érica.
-Garantir, não posso! Os humanos são imprevisíveis. Mas há alguns poucos que defendem os animais. Vamos ter fé que o bom senso prevaleça. –Disse o sábio General.
-Está bem, vamos confiar que tal maluquice não siga adiante. –Disse Érica. E virando-se para as outras:
-Vamos, meninas. Pelo menos contamos com a ajuda do Sapo General que nos restabeleceu a confiança.
-Até mais ver! –Disse o Sapo.
-Até mais! –Responderam as três, encaminhando-se em direção ao barulho das ondas do mar que quebravam na praia, aquém dos arrecifes hospitaleiros.
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